Globeleza 2017: Um passo à frente contra a objetificação da mulher negra

Helena Vitorino
Lado M
Published in
3 min readJan 9, 2017

A imagem da Globeleza é uma das mais poderosas insígnias da Rede Globo de Televisão. Assim como a abertura do Fantástico ou a vinheta do Jornal Nacional, a chamada que anuncia o carnaval é uma marca registrada da Globo: a sambista negra, nua e parcialmente pintada em cores vibrantes e purpurina, dançando ao som de “Eu tô no ar com Globeleza”, praticamente abria os trabalhos carnavalescos da emissora. Porém, essa imagem, amplamente explorada para caracterizar o carnaval brasileiro, e tão criticada pela explícita objetificação do corpo da mulher negra, mudou em 2017. O cobiçado corpo negro já não samba mais nu diante de nossos olhos — e esse é um passo importante na luta contra a objetificação sexual da mulher negra.

Os meios de comunicação ajudaram na construção do mito da “mulata-Jezebel”, a negra lasciva que rebola em rede nacional tentando conquistar seu marido, mas só para uns vinte ou trinta minutos de cama; e que é pra isso que essa imagem de mulata-lasciva serve: ela serve aos homens, e ela serve à cama. Neste estereótipo animalesco sexual está contida não só a figura da Globeleza, mas também das Mulatas do Sargentelli, das passistas das escolas de samba, das dançarinas de palco de famosos programas de TV do Brasil. E todas essas mulheres encerradas na etiqueta de “mulata do samba” tem uma ancestral em comum, não biológica, mas uma ancestral cultural: a escrava negra, que servia para atender aos impulsos carnais de seu senhor, confinada no calabouço da Senzala e requisitada durante o dia ou durante a noite, à hora que fosse, contra sua vontade. Em outras palavras, a construção da “mulata-Jezebel moderna”, essa que vemos na TV em horário nobre, em cores vibrantes e sorrindo é a sofisticação cruel da escrava negra estuprada pelo senhor.

Trazer uma Globeleza vestida, acompanhada e consequentemente menos sexualizada é uma tarefa que veio com anos de atraso, é verdade, mas veio. Coletivos nacionais clamavam há muito tempo pela transformação urgente deste símbolo sexual carnavalesco que apenas serve a quem o explora. Em 2016, a Revista AzMina esteve em nas ruas de New Orleans perguntando às mulheres americanas quais suas impressões ao assistirem ao vídeo da Globeleza, e obviamente as respostas foram em repúdio à sexualização e objetificação gratuitas da mulher negra brasileira. A Quadrinhos Ácidos publicou em 2015 uma animação chamada “Globelezo”, onde um homem aparece sambando, nu e coberto de purpurina, num desenho animado. A ideia era questionar o porquê de mulheres nuas na TV ser tão comum, e quando ocorre a inversão de papéis temos uma estranheza enorme. Logo, a Globo só “inovou” em acatar uma reivindicação que vinha sendo clamada a plenos pulmões pelos coletivos feministas, e principalmente pelos coletivos feministas negros.

A transformação da figura única da dançarina Globeleza num grupo de dançarinos horizontalizou a ideia de espírito carnavalesco, ao destituir da mulher a imagem exclusiva do feriado, e transferi-la a uma noção de celebração grupal. A propaganda ainda contou com inclusão de figurinos regionais carnavalescos, na tentativa de atribuir à festa suas peculiaridades locais, descentralizando a noção carioquense limitada da mulher pelada dançando. A Globeleza agora é um grupo, um grupo brasileiro, festivo e bem trajado, e não mais só uma preta carioca e nua.

Essa mudança, que pode soar tão pequena e insignificante aos olhos dos nulos, na verdade é mais uma das conquistas do protesto feminista: uma dançarina vestida em rede nacional tem muito mais poder do que se pode imaginar. Ela dá força para que as mulheres se imponham no carnaval contra as investidas agressivas dos homens nas ruas, nos blocos e nos sambódromos; ela dá força para que as mulheres exijam respeito de todos não pelo que vestem, mas pelo que são e pelo que representam. Acima de tudo, ela dá força para que as mulheres não parem de contestar aquilo que é errado e que lhes prejudica, pois mesmo os grandes meios de comunicação e as grandes mídias estão sujeitas, cada vez mais, ao nosso poder de ditar as regras.

Originally published at www.siteladom.com.br on January 9, 2017.

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