Crédito: Graja Minas / acervo pessoal

Graja Minas: ouça e respeite as mulheres da periferia

Nathalia Marques
Lado M

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Quem nunca pisou em uma região periférica de São Paulo não deve compreender com profundidade a resistência que cada morador carrega no olhar. Quem só ouvir falar da quebrada, provavelmente, deve carregar no imaginário uma série de preconceitos. “Arte e cultura. Isso chega até lá?”. Não só chega, mas também é produzida como forma de (r)existir.

Há algumas décadas, por exemplo, o Grajaú, periferia de São Paulo, se tornou uma fonte rica de produção cultural. Da região, já saíram mais de 200 MCs. Talvez você não conheça esses artistas, pois as rádios que escuta, os sites que navega ou o jornal que lê não valoriza como deveria essa produção cultural.

Infelizmente, a marginalização da arte periférica continua sendo uma realidade, mesmo diante das vastas possibilidades que a internet nos proporciona. Para as artistas das regiões periféricas, a realidade ainda é mais complicada. Isso porque elas precisam enfrentar todo o preconceito que ainda é praticado contra a cultura periférica e o machismo, que ocorre não somente fora da periferia, mas também dentro da cena cultural na qual estão inseridas.

Diante disso, visando quebrar as barreiras de gênero no cenário periférico e colocar as mulheres como protagonistas, surge o Graja Minas, um coletivo que mulheres que lançou a primeira coletânea feminina de Hip Hop do Grajaú.

Produzido por 19 artistas, a coletânea conta com canções que colocam o dedo na ferida e que abordam questões importantes, como racismo, machismo, as raízes da população periférica e o legado das mulheres. Ou seja, o álbum é ato político e de resistência que todos deveriam ouvir.

Confira o papo com com as mulheres do Graja Minas:

Crédito: Graja Minas / acervo pessoal

Lado M — Como surgiu o GrajaMinas?

Graja Minas — O Graja Minas surgiu da necessidade que sentíamos de ver mais mulheres no papel de protagonista dentro do movimento HIP HOP. Fizemos um mapeamento e notamos que Grajaú formou aproximadamente 200 MCs homens desde a década de 1980 até 2017 e apenas, aproximadamente, 17 MCs mulheres.

Dessas 17, três mulheres atuaram na década de 90. 14 se inseriram ao movimento de 2015 até 2017. Portanto, vimos a necessidade urgente de fazer um registro sonoro feminino que falasse sobre nossas demandas, pensamentos, modo de ver e pensar a vida.

O Graja Minas é o nosso brado de existência.

Lado M — Vocês são um grupo de 19 mulheres. Como foi criar um álbum juntas?

Graja Minas — O álbum surge de um grito de resistência. Todas as mulheres do coletivo já atuavam no cenário de luta e ativismo cultural, seja por meio do grafite, rap, break ou até mesmo através da literatura marginal.

O álbum permitiu a união dessas vozes femininas, das ideias, utopias. Temos no grupo desde a mana que acabou de completar 30 anos de hip hop do Grajaú até a nova geração. Também temos quem nunca havia pego em um microfone para cantar, mas que se descobriu e teve coragem de se expressar por meio da música.

Unimos passado e presente sem medo ou dedo indicando o que deveríamos fazer. Simplesmente fizemos nossas composições de acordo com nossos sentimentos e percepções de mundo. É inegável o quanto foi importante a união e respeito às singularidades de cada uma de nós. Isso nos fez produzir um álbum plural com muitas influências musicais sem perder a essência do rap.

Lado M — No álbum, vocês falam sobre união feminina. Sabemos que ainda rola muita rivalidade entre as mulheres. Na opinião de vocês, qual a importância da união feminina?

Graja Minas — Nós acreditamos muito na sororidade. Sempre foi de interesse da sociedade patriarcal que mulheres brigassem entre si para promover cada vez mais uma separação proposital e que inviabiliza nossas potências.

Acreditamos que é importante levantar outras mulheres e mostrar para elas que o caminho da união só nos fortalece, uma vez que entendemos umas às outras em sua plenitude como mulher.

Lado M — Vocês lançaram a primeira coletânea de música feminina do Grajaú. Como vocês entendem o cenário musical para as mulheres da periferia?

Graja Minas — É a primeira coletânea feminina da região, mas isso não marca o início do feminino no rap do Grajaú. Se o fizemos foi porque existiu um alicerce que foi erguido pelas manas do passado, a introdução do nosso álbum fala um pouco dessa história.

Em 1988, já existiam mulheres desafiando a lógica da época e fazendo rap no Grajaú. O foda é que mesmo o rap problematizando a sociedade patriarcal, machista, racista e extremamente preconceituosa, nos deparamos, dentro do movimento, com tudo isso. No entanto, utilizamos essas barreiras para nos fortalecer e nos reafirmar na luta.

O Graja Minas inspira o feminino no rap e na música da periferia, potencializa a união no hip hop e fora dele. Historicamente, a mulher está sempre em segundo plano, especialmente no cenário musical. Indo um pouco além e fazendo um recorte de raça e classe, não é novidade que a mulher negra e periférica é a que mais sofre com a exclusão.

O hip hop surge no gueto e na necessidade de resistência. Dado o cenário em que vivemos, concluímos que tomar a posição de protagonista é uma afronta. Quando a voz afrontosa parte de uma mulher, isso incomoda ainda mais as estruturas hegemônicas e provoca uma onda de medo. Entendemos que é preciso criarmos estratégias de transformação do território, da sociedade e o Graja Minas é uma delas. Desejamos que cada vez mais mulheres se empoderem.

Lado M — O Grajaú é uma fonte de produção cultural em São Paulo. No entanto, sabemos que a valorização dessa produção cultural ainda não acontece como deveria. Como vocês percebem isso?

Graja Minas — A produção de cultura periférica seja em qualquer instância ainda é muito desvalorizada. Como MC’s e cantoras percebemos essa desvalorização quando o contratante nos convida para fazer um show, mas em nenhum momento fala sobre pagar cachê, como se tivéssemos que trabalhar de forma gratuita desvalorizando nosso potencial.

Também vivenciamos essa situação quando percebemos que nosso grupo não é convidado para cantar em locais mais centralizados, uma vez que o público que frequenta esses lugares possui poder aquisitivo maior. Lutamos no coletivo para nos afirmar enquanto trabalhadoras da cultura que precisam ser reconhecidas e valorizadas.

Lado M — Vivemos em uma época de repressão, descaso público e de muita desesperança. Escutando o álbum de vocês, percebi que ele é um ato político e de resistência. Qual a importância da cultura, principalmente periférica, na construção de uma resistência concreta?

Graja Minas — O Rap desde os primórdios possui a característica de ser uma música que denuncia as barbáries da sociedade. Para além disso, o Rap empodera a pessoa de maneira com que a faça descobrir quem ela é dentro da sociedade, quais são seus interesses e suas lutas.

Como mulheres dentro da cultura, temos a missão de, através da nossa música, trazer a reflexão e a discussão de temáticas que necessitam ser discutidas. O Rap é educação e, assim como Paulo Freire, acreditamos que a educação não muda o mundo. Educação muda as pessoas e as pessoas mudam o mundo.

Ouça o álbum ‘Da lama nasce a flor de lótus’

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Nathalia Marques
Lado M

Jornalista que viaja, literalmente e metaforicamente, e escreve sobre as coisas