Hot Girls Wanted traz realidade nua e crua do pornô

Lado M
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Tudo começa com os mesmos elementos dos típicos filmes adolescentes. Uma jovem colegial bonita, líder de torcida em seu colégio, em alguma cidadezinha do interior dos Estados Unidos. Um futuro promissor, o desejo de escapar. A rota de fuga, porém, não é o sonho de se tornar estrela da música ou modelo de passarelas, dessa vez.

A realidade denunciada por Hot Girls Wanted, aclamado documentário dirigido por Jill Bauer e Ronna Gradus, é a do chamado pornô “pró-am”, vídeos com “amadores” pagos. São produções baratas, em geral gravadas com uma só câmera e sem roteiro. Na era da internet, a atriz que interpreta a chamada “girl next door” — a garota da casa ao lado, ou seja, a garota comum — é substituída pela verdadeira garota da casa ao lado.

O filme abre as portas de uma casa de Miami administrada por Riley Reynolds, um recrutador de jovens promessas da indústria do pornô amador, que encontra seus novos talentos através de anúncios publicados no site Craigslist. A facilidade com que o contato é feito surpreende: ao lado de imóveis, carros e todo tipo de utensílios a venda, encontram-se anúncios como da agência de Riley, que oferece oportunidade de emprego com direito a voo para Miami pago.

“Sem a internet, eu provavelmente teria procurado um trabalho em outro estado e ido estudar”, é uma das primeiras falas de Tressa, uma garota de 19 anos que sai do interior do Texas para entrar na indústria sob o nome de Stella May. “Eu precisava de uma escapatória”. A colega Rachel, de 18, faz pornô há poucas semanas e concorda: “Somos livres agora. O mundo está em nossas mãos. Desde que vim pra cá, é tudo sobre mim. Quero estar no lugar dos meus pais na idade deles? Não! Não quero ir pra faculdade, conhecer alguém, me casar, ficar na minha cidade e ter um monte de filhos e morrer lá.”

No pornô amador, a cultura do descarte chega às mulheres (ou seria isso, realmente, uma novidade?). As grandes empresas normalmente usam uma garota duas ou três vezes, justamente porque seu atrativo está em serem caras novas, que convencem o espectador ao se passarem por virgens. No documentário, usa-se o termo “teenyboppers” para descrever essas meninas, jovens, na faixa dos 18 a 21 anos, que acabaram de entrar no mercado e fazem sucesso pela aparência adolescente.

Na melhor das hipóteses, uma teenybopper sobrevive por um ano na indústria; a não ser que ela seja um grande sucesso, terá que aceitar trabalhos mais voltados a nichos, como o do sadomasoquismo, para continuar no setor. O princípio do descarte não incomoda: “Todo dia uma nova garota faz 18 anos, e todo dia uma nova garota quer fazer pornô. Eu nunca vou ficar sem atrizes”, diz Riley, o agente de talentos que administra a casa retratada no documentário.

Garotas novas normalmente fazem de três a cinco cenas por semana, ganhando, em média, 800 dólares por cada uma. Isso inclui o típico: se submeter a posições desconfortáveis e, no final, ter o homem ejaculando no rosto, na bunda, nos peitos, na boca. Paga-se mais por “tortas de creme” (quando o homem ejacula dentro da vagina e depois a mulher expele o esperma), para que a atriz possa comprar uma pílula do dia seguinte e, assim, não correr o risco de engravidar.

Preservativos não são regra na indústria pornográfica; pelo contrário, o pornô sem eles é mais popular e, devido à aprovação de uma lei que obriga o uso de preservativos pela indústria na Califórnia, muitas produções migraram para outros locais, como a Flórida. O problema, é claro, não se resume ao risco de gravidez das atrizes, uma vez que o controle contra doenças sexualmente transmissíveis se resume a exames realizados com os atores periodicamente. Por mais frequente que sejam, esses exames apenas constatam a existência de uma eventual doença quando ela já estiver lá — em termos de prevenção, é como tapar o sol com a peneira.

E essa nem é a pior parte. Uma das cenas mais marcantes do documentário é a que mostra Jade, uma das atrizes “veteranas” da casa de Riley, em um vídeo do gênero que se conhece como abuso facial: sexo oral extremo e violento, feito com o objetivo de fazer a garota vomitar. O caso dela é especialmente degradante, uma vez que faz parte de um site entitulado “Latina Abuse” — uma declaração de ódio às mulheres latinas, documentando seu abuso enquanto as agridem verbalmente a partir de estereótipos preconceituosos de pessoas hispânicas.

Mais assustador do que a mera existência desse tipo de cena é saber o quanto isso é comum: segundo informações exibidas no próprio filme, em 2014, sites de pornô abusivo tiveram mais de 60 milhões de acessos por mês, e uma pesquisa recente mostra que quase 40% da pornografia online apresenta violência contra mulheres. “Oferta e demanda. Isso está lá porque alguém quer ver”, chega a dizer Jade, conformada com a realidade do trabalho.

A verdade nua e crua

Mas afinal, o que faz garotas de classe média entrarem na indústria da pornografia e se sujeitarem a esse tipo de violência? No caso deHot Girls Wanted, parece predominar o desejo de escapar do marasmo interiorano e conquistar o mundo com a fama. Sem cair em moralismos, todavia, é importante e necessário problematizar além disso.

Primeiramente, temos a questão monetária. Uma das referências citadas no filme, Belle Knox tornou-se famosa como “a atriz pornô da Duke”, ao entrar na indústria para pagar suas anuidades na Duke University, uma das maiores universidades dos Estados Unidos. Antes disso, ela trabalhava como garçonete, com um chefe que a tratava mal, horários que interferiam em seus estudos e ganhando menos de 400 dólares por mês; a pornografia permitiu que ela ganhasse cerca de 1200 dólares por cena, com o bônus de poder controlar a própria agenda.

Não é preciso fazer grandes esforços para se dar conta de que isso é resultado direto da sociedade machista e, indissociavelmente, da opressão capitalista. Se a exploração da mão de obra é desumana para todos os trabalhadores, para as mulheres é ainda pior: apenas no Brasil, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2013 aponta que as mulheres recebem 73,7% do salário dos homens. As jovens retratadas no documentário podem não estar em casos extremos de necessitar de vender o próprio corpo para sobreviver, mas num mundo em que é tão difícil para as mulheres serem bem-sucedidas de outra forma, aproveitar-se da cultura da objetificação feminina acaba se mostrando oportuno.

À medida em que o tempo passa, o glamour vai ruindo e muitas das meninas acompanhadas por Bauer e Gradus passam a questionar o trabalho na indústria pornográfica: no fim das contas, o tipo de degradação a que são expostas vale todo o dinheiro? “No mundo do pornô amador, você é só um pedaço de carne. O importante é que o cara goze, a garota só está lá pra ajudar. Contanto que você tenha peitos, e uma bunda e uma vagina, é só o que realmente importa. Eles não se importam com quem você é”, reflete Rachel diante das câmeras. Uma realidade que não é restrita às mulheres da indústria pornográfica.

Quando Tressa começa a namorar, o foco do filme vai, cada vez mais, se voltando para o relacionamento do casal e à forma como Kendall lida com o fato da namorada ser atriz pornô. O peso que foi dado à opinião do homem sobre a profissão da namorada (e, consequentemente, sobre o que ela faz com o próprio corpo) arriscou levar o filme ao caminho da reprodução do machismo velado. Contudo, uma das colocações que ele faz é bastante interessante: “Com as outras garotas com quem fiz sexo, eu sempre as fodia, nunca fazia amor. Fazia o que aprendi nos pornôs”.

Em dado momento, o filme mostra os bastidores de uma cena de um filme chamado “Virgin Manipulations” (Manipulações de Virgens), em que Rachel contracena com um homem muito mais velho. Na cena, o homem é um amigo da família e se interessa por Rachel, uma moça virgem que está prestes a ir para a faculdade. Como se o “enredo” não fosse perturbador o suficiente, o diretor dá ao ator uma orientação que é comum no meio, mas não menos aterrorizante por isso: “mesmo sem receber o sim, você dá continuidade, começa a tirar a roupa [dela]”. Enquanto isso, a atriz é orientada a nunca se envolver totalmente com a cena.

É isso que rapazes como Kendall — todos os rapazes — estão aprendendo com a pornografia: a perpetuar a cultura do estupro, a agressão, o desrespeito à mulher, o machismo. E é isso que motiva Lucy, uma das atrizes da casa de Riley, a dizer que “transar fora do pornô me assusta e ainda não quero me comprometer com alguém assim”. É isso que faz tantas garotas temerem a simples ideia de se engajar relações íntimas, chegando, em casos extremos, a preferir simular em frente às câmeras a fazê-lo com um parceiro real, na vida real. Como culpá-las? Em qual situação estamos sujeitas a mais violência, na verdade?

Originally published at www.siteladom.com.br on October 17, 2015.

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