HQ’s Feministas: conheça Magra de Ruim, a Sirlanney
Vira e mexe estou no Facebook e me deparo com uma tira da Magra de Ruim. E vou te contar: não tem uma que eu não pare pra olhar por um tempão e refletir em cima do que ela pode significar ou como ela pode se relacionar com algo que eu já tenha passado.
A autora, Sirlanney, muitas vezes consegue transmitir em uns 3 ou 4 quadros o que eu não tinha lido nem sentido em textos de milhares de toques pela internet e pelos meus livros de poesia. Entrevistando-a (como você pode conferir abaixo), descobri que, além de uma fofa, ela se inspira em outras quadrinistas por quem muita gente tem um carinho especial e que são verdadeiros símbolos da representação feminina (e feminista!) nos HQ’s, como a Marjane Satrapi e a Julie Maroh.
Conte-nos um pouco sobre você. Qual é o seu nome completo? Onde vive? Com o que trabalha? Biscoito ou bolacha?
Oi! Eu me chamo Sirlanney Freire Nogueira. Tenho tal nome porque sou filha desse povo criativo e original que vive no Ceará e que raramente vai se preocupar com muitas tradições. A não ser os mais corrompidos pelo processo civilizatório Europeu, que aí já vemos essas modinhas de Maria Eduarda, João e José. Antes da minha geração, houve uma que se importava mais com os nomes dos santos. Eu teria sido feliz se tivesse nascido nessa época, poderia me chamar Maria de Lourdes, como é o nome da minha mãe.
Agora estou vivendo em trânsito, mas no momento meu apartamento e minhas coisas estão no Rio de Janeiro. Eu não trabalho, eu faço quadrinhos e isso ocupa todo o meu tempo. Aqui no Ceará “bolacha” é sinônimo de fancha. Não sei se tem esse mesmo significado no país inteiro. Se for, bolacha.
Há quanto tempo você desenha a Magra de Ruim? De onde a ideia surgiu?
Comecei a desenhar a Magra de Ruim em 2009, mais ou menos. Antes disso já existia o blog Magra de Ruim — bem antes disso, na verdade, em 2003. Eu apenas escrevia uma espécie de diário, mas com uma carga muito sentimental, querendo transformar em ficção. Eu tinha na cabeça que não era um blog de diário, era um blog de literatura autobiográfica. Minhas inspirações eram Clara Averbuck, Natercia Pontes, Ana Paula Barbi e todos os escritores autobiográficos que eu lia compulsivamente — Henry Miller, John Fante, Bukowski, etc. Quando eu me mudei para o Rio, em 2008, trabalhando numa livraria, acabei conhecendo um novo mundo nos quadrinhos adultos autobiográficos (ou meio autobiográficos):Marjane Satrapi, Allan Sieber, André Dahmer e outros. Então tive o estalo de usar minha razoável habilidade para o desenho para contar histórias em quadrinhos, da mesma forma que já fazia escrevendo. Lembro de ter tido essa ideia há muito tempo, mas eu achava que estava inventando um novo estilo de quadrinho. Só quando eu subi nos ombros dos que vieram antes, consegui ver melhor, levar a sério e andar para frente.
Você teve alguma experiência com quadrinhos antes?
Então, eu participei de uma zine quando ainda fazia faculdade de moda, lá em 2004. As meninas queriam que tivesse quadrinho na zine e, como eu gostava de inventar histórias, ficou decidido que seria eu. A verdade é que a tirinha não tinha a menor graça. Também nesse ano eu participei de uma oficina de quadrinhos, elaborei meus personagens, consegui visualizar a Magra de Ruim. Fiquei muito feliz com a existência dela, foi um momento iluminado de revelação, mas um minuto depois eu já tinha esquecido.
Quais são as principais inspirações na hora de fazer cada tirinha?
Geralmente são situações cotidianas. Eu venho treinando bastante nos últimos anos e tô conseguindo captar o momento da imagem ideal para a tirinha, de forma cada vez mais mecânica. Ou estou conversando com alguém, ou escrevendo para alguém, ou em algum momento livre divagando sobre a vida e de repente pá: isso é um quadrinho. Tento tomar nota imediatamente ou fico repetindo a idéia na minha cabeça várias vezes, até ela se transformar numa frase que repito, até se transformar em quadros que visualizo e visualizo, até achar que está num lugar da minha mente. Seguro o bastante para que eu não esqueça. Se eu estiver em casa, desenho imediatamente.
Você teve alguma dificuldade em manter a página? Você recebeu algum tipo de crítica ao conteúdo que você posta?
As críticas me acompanharam desde o primeiro momento que quis fazer quadrinhos até hoje. Quando fui para o impresso pela primeira vez, numa revista coletânea de quadrinhos feita por amigos, um crítico (de alguma relevância nos quadrinhos nacionais) escreveu uma nota dizendo que era tudo muito ruim. Ele tinha um pouco de razão até, eu disse “ok, parei de fazer quadrinhos então” , mas eu tava só de onda. No dia seguinte. pensei em como fazer um quadrinho melhor e no outro dia também, porque eu tinha um objetivo a mais: me jogar na cara dele. Brincadeira. As críticas estão sempre presentes, porque parece que é muito mais fácil criticar do que fazer algo novo ou melhor. Em geral eu não me importo, porque nenhuma crítica é pior do que a minha própria, que já está na minha cabeça quando eu começo a fazer tal e tal quadrinho. Ninguém é tão duro comigo ou conhece minhas limitações e falhas tão bem quanto eu mesma.
Você acha que o pensamento feminista é bem representado no mundo dos quadrinhos atualmente? Como?
Não me sinto segura para dizer “representado de forma plena”, mas sim para dizer que já temos alguma representação. O mundo muda de acordo com as personagens agentes que temos em cena. No Brasil e no mundo, essas personagens (Glória!) estão surgindo. Os quadrinhos machistas ainda ganham em maioria e sufocam a gente, mas as mulheres começam a ser premiadas e vêm suas histórias virando filmes: Marjane Satrapi, Julie Maroh, Gabrielle Bell, são alguns exemplos. É um começo tímido de mulheres impondo sua voz — e não só para repetir o discurso do patriarcado! Eu acredito que os homens podem criar personagens que são representações de mulheres fortes, mas não acredito que elas podem nos representar completamente. Pois só a vivência em nossos corpos nos dá a total amplitude e complexidade do que é ser mulher.
Aqui no Brasil, eu destaco o trabalho da Gabriela Manson (Lovelove6), criadora da personagem Garota Siririca e que recentemente criou a série Ambiguidades do Man Hating, tratando de questões especificamente feministas. Temos também a Carol Rossetti e o Tailor, que fazem um quadrinho quase panfletário e de grande importância, porque passam nossos pensamentos de forma direta e clara.
Você tem alguma parceria com outras páginas de quadrinhos? Se sim, quais? (se não tiver, quais páginas você recomendaria para leitores que procurem um conteúdo semelhante ao da Magra de Ruim?)
Faz mais de um ano que eu participo da página Quadrinhos Insones, que é mista, mas temos em comum esse sentimentalismo arraigado. As páginas Inverna, Mulheres nos Quadrinhos e Zine XXX são lugares ótimos para descobrir novas minas que se dedicam bastante na feitura dos quadrinhos. Em geral, eu participo do rolê das minas nos quadrinhos brasileiros. Em geral, elas estão mandando muito.
Como foi a experiência de publicar um livro só das suas tirinhas? Qual foi, na sua opinião, a maior dificuldade do processo?
Nossa, deu uma sensação de existir! As pessoas ainda são muito apegadas ao papel, ao impresso, ao mundo físico, embora o virtual esteja nos consumindo a galopes. Não importa a frequência com que eu venho postando, não importa o público que eu consegui atingir e como ele me trata… Só com o material impresso parece que eu consegui minha carteirinha de sócia no clube dos quadrinistas, e olhe lá!. É um clube muito fechado, rs. Mas, sério, foi muito bom ver meu esforço não se evaporar no ar. Pegar um volume com minhas mãos e dizer: está aqui. O mais difícil certamente foi ter que fazer tudo sozinha. Ok, essa frase me transforma numa pessoa muito ingrata com todos que me cercam — minha mãe costurou mais de cem bolsas, meu pai me deu apoio financeiro quando precisei, muitos amigos ajudaram no processo. Mas a decisão final, a responsabilidade do lance era toda minha. Foi um processo bem solitário no todo, mas que me deu em troca muito amadurecimento e um livro.
Você tem mais afinidade ou interesse por alguma vertente feminista específica? Por quê?
Todas as vertentes que eu conheci me acrescentaram algo. Me identifico bastante com o transfeminismo, o feminismo intersecional. Recentemente pedi para entrar no grupo das Feministas Radicais, mas ainda não fui aceita. Acho que elas são muito mal compreendidas e usadas de forma errônea para desmantelar a visão que os leigos têm sobre feminismo. As pessoas não entendem que, apenas graças ao feminismo, a mulher hoje é considerada um ser com alma. Que conquistamos o direito de votar, direitos trabalhistas e que podemos ir para as universidades. E, principalmente, que isso tudo aconteceu praticamente ontem, se você levar em consideração milênios de civilização baseada no patriarcado. Todas nós fomos chamadas de bruxas de diversas formas diferentes, em vários tempos — e houve aquele em que éramos queimadas vivas nas fogueiras. Querem silenciar a mulher, um homem dificilmente vai aceitar que sua mulher saiba o mesmo ou mais que ele, como bem escreveu a Virgínia Woolf: ele precisa do seu espelho mágico (a mulher) na mesa do jantar. Aquele espelho onde ele pode olhar e se ver em tamanho duplicado. Napoleão precisou disso para ir confiante para suas batalhas!
Por fim, tem algum recado que você queira dar pra quem ainda não conferiu a página da Magra de Ruim?
Não é só para mulher, mas é uma forma muito feminina de ver as coisas, porque eu me considero muito feminina. Talvez não seja melhor nem pior do que o que você está acostumado a ler, apenas tenho minhas especificidades e a pretensão de criar uma nova mitologia que possa nos servir a todos.
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Originally published at www.siteladom.com.br on December 17, 2014.