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I May Destroy You e as nuances dos abusos sexuais

Ane Cristina
Lado M

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Criada, roteirizada, produzida, dirigida e protagonizada (sim, são muitos adjetivos!) por Michaela Coel, I May Destroy You conta em doze episódios a história de Arabella, jovem escritora moradora de Londres. Certa noite, Bella sai com os amigos, como de costume. No dia seguinte, ela percebe que a tela do seu celular foi quebrada, sua testa está ferida e ela tem poucas memórias do que de fato aconteceu na noite anterior.

I May Destroy You é uma produção que aborda as várias nuances dos abusos sexuais. Apesar de uma maior conscientização sobre a gama de violências às quais mulheres podem ser submetidas, ainda há um entendimento de que estupro é algo que acontece apenas em becos escuros pelas mãos (e todo o corpo) de um homem desconhecido.

A partir daqui, spoilers sobre o enredo da série.

Bella, por exemplo, passa por uma violência incontestável. Drogada e estuprada no banheiro de um bar, ela recebe toda a assistência quando recorre à polícia, sendo atendida de forma cuidadosa por profissionais mulheres, desde à prestação de depoimento até o exame de corpo de delito.

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Enquanto tentava se recuperar do trauma horrível, ainda recente, a escritora acaba sofrendo outra violência sexual. Mas dessa vez, se passam dias até que ela se dê conta da gravidade do que novamente lhe aconteceu.

Em seu primeiro encontro sexual pós-abuso, o parceiro de Bella retira a camisinha sem que ela perceba. Quando ela se dá conta, ele lhe diz que achou que ela tinha percebido. Bella reage com naturalidade, apesar da chateação em precisar tomar pílula do dia seguinte.

Após algum tempo, ela descobre que o comportamento do rapaz foi premeditado e não era a primeira vez que ele havia agido dessa maneira.

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A prática tem um nome: stealthing. O termo em inglês significa algo que foi feito furtivamente. No Reino Unido, em 2019, um homem foi condenado a doze anos de prisão por estupro, após retirar a camisinha sem o consentimento da parceira.

Já no Brasil, a prática provavelmente não seria considerada estupro. De acordo com o artigo 213 do Código Penal, estupro consiste em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.

Aqui, há a possibilidade do stealthing ser enquadrado como crime pelo artigo 215, que fala sobre violação sexual por meio de fraude: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima.”

Em I May Destroy You, há um debate sobre o que se classifica como “fraude” em dois momentos. Terry, a melhor amiga de Bella, participa de um ménage aparentemente espontâneo: ela conhece dois caras numa noite e acaba os levando para o seu quarto, tudo de maneira consensual.

Mas a forma como a noite termina a faz questionar a espontaneidade daquilo. Terry percebe que eles haviam combinado tudo previamente. E se sente violada.

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Kwame, também melhor amigo de Bella, decide explorar a sua sexualidade. O rapaz, que se identifica como gay, resolve tentar se relacionar sexualmente com uma mulher. Após a relação, ele revela a ela sua orientação sexual. Ela se sente enganada. E violada.

De diferentes formas, a série traz um debate sobre consentimento. O “sim” não se refere apenas à relação sexual, mas ao conjunto da situação, que vai desde o uso de métodos contraceptivos até o seu parceiro ser quem ele realmente afirma ser.

Recorte de gênero e raça

Algo importante a ser dito sobre Kwame é que essa vontade de “explorar a sexualidade” não veio do nada. O rapaz passou a se sentir inseguro em relações sexuais com homens após sofrer um abuso num encontro que começou de forma consensual.

Assim como Bella, Kwame também decidiu ir até à delegacia e relatar o que tinha acontecido. No entanto, a única informação que ele tinha do agressor era o endereço, já que ele não havia lhe dito o nome por estar como “discreto” no perfil do aplicativo de relacionamento.

O despreparo dos policiais em lidar com a situação faz com Kwame vá embora sem prestar queixa, embora tenha sofrido uma violência grave.

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Outro recorte em I May Destroy You é o de raça. Em um flashback de 2004, a série nos apresenta a adolescente Theo. Em uma relação consensual com Ryan, Theo percebe que ele começa a tirar fotos do ato sem a sua autorização.

Hoje, todo mundo sabe que filmar ou fotografar o ato sexual sem consentimento é uma forma de abuso. Mas em 2004, além do debate sobre consentimento ser quase inexistente, poucos celulares tinham câmera.

Como forma de vingança, Theo, uma garota branca, inventa que toda a relação com Ryan, um menino negro, não foi consensual e inclusive faz ferimentos em si mesma para forjar provas da agressão.

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Imediatamente, Ryan é trancado em uma sala e a polícia é chamada. A série nos mostra como os privilégios se embaraçam em uma situação como essa. Apesar de Ryan ser privilegiado pelo seu gênero, e ter abusado sexualmente de Theo, a garota branca ainda possui privilégios pela cor de sua pele.

Em um dos episódios, Bella comenta que só após as violências sexuais que sofreu é que ela começa a se reconhecer como mulher. Antes disso, ela era negra.

A série é baseada na experiência pessoal de Michaela Coel, que sofreu um abuso sexual muito parecido com o de sua protagonista:

“Através da minha história pessoal, percebi como era comum roubarem o consentimento de você. E eu uso as risadas para dissociar de algo perturbador ou para se aproximar disso. Arabella é mais poderosa que o trauma dela, mas todos têm esse poder dentro de si. Se eu puder passar para quem assiste que não estão sozinhos e devem ser gentis com eles mesmos, vai ser um sonho se realizando.”

I May Destroy You é uma série sobre abuso, trauma, culpa, amizade e perdão. E é, com certeza, uma das produções mais importantes e necessárias deste ano.

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Ane Cristina
Lado M

baiana-paulista, quase-jornalista, sei um pouco de tudo