Jessica Jones é a representatividade que buscávamos no universo Marvel

Ana Carolina Müller
Lado M
Published in
5 min readMay 2, 2017

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Em 2001, a Marvel Comics retomou uma ideia já engavetada há alguns anos: uma linha editorial voltada para o público adulto. Com a Marvel MAX, vieram títulos com conteúdo explícito que inseriram seus heróis em contextos cada vez mais reais. Junto com personagens masculinos famosos, conhecemos Jessica Jones, protagonista da HQ Alias que, após um acidente de carro que matou toda a sua família, adquire superforça e passa a usar o poder em seu trabalho como investigadora.

A HQ Alias não fez tanto sucesso quanto os outros títulos, já que uma heroína desenhada de maneira pouco sensual soltando palavrões não costumava agradar ao público da época. Até que chegou 2015 e, numa nova era para o protagonismo feminino, a Netflix nos reapresenta Jessica Jones. A heroína, interpretada por Krysten Ritter, é uma mulher independente que trabalha como investigadora particular, bebe demais e não faz questão de agradar ninguém. Jessica é bastante fechada para se relacionar com as pessoas a sua volta e isso se reflete na forma como o público passa a conhecê-la. Inicialmente, só conseguimos entender que ela sofre de algum tipo de Transtorno Pós-Traumático, até percebermos que, na verdade, sua agressividade esconde uma preocupação sobre como usar seu poder para o bem de todos.

Jessica Jones da série da Netflix e Jessica Jones das HQs

Apesar da personagem ter suas principais características bem representadas por Krysten, há algumas diferenças interessantes entre a HQ e a série da Netflix: na série, Jessica zomba dos uniformes e da superexposição dos colegas, preferindo usar seus poderes discretamente, enquanto nos quadrinhos ela até mesmo se une aos Vingadores por um tempo. Da mesma forma, Jessica originalmente perde os pais e é adotada por um casal amoroso que a incentiva a utilizar seus poderes para ajudar a população; na série, ela é adotada pela mãe abusiva de Trish, sendo a garota sua única amiga até a fase adulta.

Mas a diferença mais importante entre ambas histórias está no principal inimigo de Jessica, o antes conhecido como Homem-Púrpura, capaz de obrigar qualquer pessoa a obedecer suas ordens — como, por exemplo, raptar Jessica e obrigá-la a assistir o vilão fazer o que quisesse com diversas mulheres. Qualquer ordem dele é obedecida imediatamente, como uma hipnose. Com a releitura da Netflix, a relação entre ambos é transformada para abordar relacionamentos abusivos reais, com todas as suas características que merecem ser discutidas. A capacidade masculina de controlar a mente e as vontades de uma mulher são comparadas a um superpoder: o vilão dita quando ela deve falar, comer e até mesmo sorrir. Seu “relacionamento”, sob as ordens dele, dura alguns meses, até que Jessica consegue e fugir, nos apresentando, então, um episódio piloto com uma heroína traumatizada sem muitas pessoas que acreditem nela.

Quem conhecia David Tennant antes de sua brilhante interpretação em Jessica Jones já sabia o que esperar. Seu vilão consegue cativar conforme revela seus traumas e tenta mostrar a Jessica que conseguir tudo o que quer é, na verdade, uma maldição. Kilgrave é cruel, egoísta e megalomaníaco, mas uma voz lá no fundo insiste em nos dizer que ele está tentando ser uma boa pessoa e merece “perdão”. Utilizando diversas formas de abuso, ele tenta de tudo para entrar na mente de Jessica — e do público.

Jessica Jones (Krysten Ritter) e Kilgrave (David Tennant)

Agradando ao público

Se, por um lado, Jessica Jones atraiu novas fãs para a Marvel, também conseguiu atingir um público masculino que, em geral, não respondeu positivamente as poucas cenas de ação. Afinal, todos nós havíamos acabado de receber lutas impecavelmente coreografadas em Demolidor, também produzido pela Netflix, e não esperávamos menos que isso para Jessica.

Sou particularmente fã da Marvel mas, primeiramente, sou mulher, e como tal só consegui prestar atenção primeiro em outros pontos dolorosos. Antes mesmo de saber toda a história de Jessica, já vemos suas crises de ansiedade relacionadas a uma voz masculina que a perturba. Talvez os homens que acompanham a série não compartilhem o desespero da protagonista ao lembrar de Kilgrave ou ver um homem parecido com ele andando na rua. Todas as cores, sombras e sons ao redor dela permitem ao público sentir um trauma que, infelizmente, muitas de nós conhecem bem.

Relacionamento abusivo

Essa temática feminista aparece o tempo todo, com diálogos que poderiam facilmente falar da vida real e não apenas de um superpoder. Enquanto Jessica tenta deter Kilgrave, ele continua obcecado por ela. Jessica Jones consegue abordar assuntos importantes como abuso psicológico, moral e sexual. Ela passa por todos os estágios conhecidos; culpa, vergonha, medo. Jessica chega a pensar até mesmo se não seria melhor ceder e ficar com seu perseguidor para tentar “mudá-lo”. Com sua superforça, ela também precisa ajudar outras mulheres vítimas dele que não tem a mesma sorte. Além disso, a protagonista é uma mulher que vive sozinha, faz sexo casual em seu apartamento e mantém uma profissão considerada não muito segura, o que atrai comentários e “preocupações” dos homens ao seu redor.

São inúmeros simbolismos e interpretações para uma série de super-heróis que, finalmente, trouxe uma mulher real e atrai até mesmo aquelas que não se interessavam por essa temática. Jessica Jones é a heroína que nós precisávamos, a representatividade que as mulheres estavam esperando. Nada de uniformes sensuais ou parceiros homens para salvá-la. Ao invés disso, sua força é usada para denunciar violências sutis, diárias, lutando para que Kilgrave não possa mais destruir a vida de outras mulheres.

A segunda temporada de Jessica Jones já está sendo produzida com previsão de estreia para 2018. As HQs de Alias também estão disponíveis online para quem quiser conhecer um novo tipo de leitura ou um outro lado da Marvel Comics.

Originally published at www.siteladom.com.br on May 2, 2017.

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