Livro O Homem da Forca mostra que a realidade não é uma só

Gabrielle Abreu
Lado M

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Romance de Shirley Jackson convida leitores a mergulharem nas dimensões psicológicas da mente humana

Publicado originalmente em 1951, O Homem da Forca, romance escrito por Shirley Jackson, chega no Brasil pela Companhia das Letras. O livro narra a história de Natalie Waite, uma garota de 17 anos que está prestes a deixar a casa para ir à faculdade. Embora essa seja uma descrição simplória que poderia ser usada para descrever a vida de uma garota dos anos 50, a autora trata o tema como um thriller psicológico, investigando as raízes das inquietações da jovem.

No seio familiar, Natalie convive com a mãe dona de casa e o pai escritor, que dá muito valor aos encontros com seus amigos do meio literário. No último evento em casa, Natalie passa por uma experiência traumática e a partir dali caminha cada vez mais para seu mundo interior. A fase de amadurecimento, que levanta questões identitárias, colabora para que Natalie se perca ainda mais dentro de si.

“Havia um ponto em Natalie, que ela mesma não entendia direito, e que provavelmente era em função de sua idade, em que a obediência havia terminado e o controle começado; depois que esse ponto foi atingido e cruzado, Natalie se tornou uma pessoa solitária e funcional, capaz de constatar as próprias possibilidades verossímeis.”

Na faculdade, Natalie demonstra ser uma garota insegura e vive reclusa em seus próprios devaneios, exceto pela troca de cartas com o pai, o que retoma a pouca proximidade que Natalie poderia ter com sua antiga vida familiar.

Aos poucos a personagem constrói laços sociais nesse novo ambiente que agora chama de lar, mas em vez de ser mais receptiva, passa a analisar os outros e a si mesma com mais atenção, medindo cada ação e pensamento.

“Será que alguém estava fitando Natalie, identificando-a por alguma característica extraordinária da qual Natalie não sabia ou tinha se esquecido ou havia se convencido de que ninguém mais notava?”

No livro, o narrador é uma figura onipresente que embora descreva sentimentos e pensamentos da personagem com certa crítica, parece não chegar a uma conclusão sobre quem é a garota.

Os devaneios da personagem lembram a Alice de Lewis Carroll em sua versão mais perturbadora. Por vezes, alguns trechos suscitam a dúvida se Natalie está criando personagens em sua cabeça ou se há mais alguém convivendo com ela.

“Talvez — e este seu pensamento mais insistente, a ideia que permanecia com ela e vinha de repente para perturbá-la em momentos bizarros, e para confrontá-la — imagine, na verdade, que ela não fosse Natalie Waite, universitária, filha de Arnold Waite, uma criatura de destino intenso e fascinante; imagine que fosse outra pessoa?”

A trama é de uma atmosfera duvidosa, em que deixa em aberto muitos questionamentos que levanta, sendo tarefa do leitor interpretar o que lê. O mais impactante é a profundidade com que a autora trata de temas tão comuns, como dramas familiares e a descoberta da própria identidade, em uma narrativa enigmática e perturbadora. Em contrapartida, por justamente descrever um universo limitado (embora trate de dimensões psicológicas), a vida pacata da personagem pode arrastar a leitura em alguns momentos.

Devido à fama que precede Jackson, cuja influência chega a escritores como Stephen King e Neil Gaiman, vale a pena a experiência de mergulhar nessa obra para quem sabe conhecer mais do trabalho da autora a partir daí. Uma de suas obras, A Assombração da Casa da Colina, publicada originalmente em 1959, inspirou a série A maldição da Residência Hill (2018) da Netflix.

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Gabrielle Abreu
Lado M
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Estudante de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP. “Para escrever basta começar. “