M-8:Quando a Morte Socorre a Vida traz suspense como pano de fundo para debater racismo

Aline Naomi
Lado M

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Há cerca de um ano, o IBGE publicava a pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, verificando que, pela primeira vez, o número de matrículas de negros e pardos nas universidades e faculdades públicas no Brasil passou a representar 50,3% em 2018, superando a proporção de estudantes declarados brancos. Foi o interesse na história desses jovens que levou o diretor Jeferson De a contá-la em M-8 — Quando a Morte Socorre a Vida, que estreia dia 3 de dezembro de 2020 nos cinemas, que foram reabertos em algumas localidades.

Trailer oficial do filme, produzido pela Migdal e Buda Filmes e distribuído pela Paris Filmes

Baseado no livro homônimo de Salomão Polakiewicz, o filme acompanha a trajetória de Maurício (Juan Paiva) em seus primeiros dias na Universidade Federal de Medicina. Em uma aula de anatomia, ele e seus colegas são apresentados ao M-8 (Raphael Logam), o cadáver de um homem negro que será seu objeto de estudo ao longo do semestre.

O M-8 logo vira uma obsessão para Maurício, que começa a questionar a história daqueles corpos, sobretudo porque, além dele mesmo e dos funcionários da universidade, eles são negros. “Às vezes eu me pergunto se eu não tenho mais a ver com esses corpos do que com os meus colegas de turma”, fala o personagem.

Domingos aponta para uma lista na parede enquanto sorri para Maurício. Atrás, vê-se Gustavo com a feição desapontada.
Maurício com seus colegas de turma, Domingos (Bruno Peixoto) e Gustavo (Flabio Beltrão) (Fonte: Divulgação)

O clima de suspense somado aos aspectos raciais suscitados na trama chegam a lembrar o trabalho de Jordan Peele, diretor de Corra! e Nós. Entretanto, logo se percebe que, ao contrário do que acontece nas obras do norte-americano, em M-8 o suspense serve mais como um palco para o questionamento ao racismo estrutural e às questões existenciais de Maurício em vez de ser o foco da história.

O racismo é trazido através das vivências do personagem principal, nos diálogos, olhares e desconfortos. Há momentos mais explícitos, como em uma cena de violência policial, até momentos mais sutis, como quando Maurício caminha a um ponto de ônibus e Suzana (Giulia Gayoso), se dirigindo ao seu carro, comenta sobre seu avô médico com um colega. É uma cena curta, mas muito representativa quando falamos de uma geração que é a primeira a entrar na faculdade e outra que vem de famílias que acessam o ensino superior (e outros privilégios) há gerações. Também nos lembra que, para além do acesso à universidade, temas como permanência estudantil e acolhimento são fundamentais.

Retrato do diretor Jeferson De debruçado em uma maca sobre a qual está um cadáver de um homem negro.
Jeferson De, diretor que também esteve à frente dos filmes “Bróder” e Prisioneiro da Liberdade” (Fonte: Divulgação)

Cida

Não é possível falar de M-8 sem citar a mãe de Maurício, Cida, interpretada de forma impecável por Mariana Nunes. A atriz, que tem um vasto currículo na televisão, no cinema e no teatro, interpretou Rita na primeira fase de Amor de Mãe e vive Lélia Gonzalez no especial da TV Globo Falas Negras, além de ser responsável pela presença potente que a personagem tem em toda cena que aparece.

Cida é mulher preta, auxiliar de enfermagem, mãe solo e batalhou para que o filho tivesse as oportunidades que lhe foram negadas. Cida personifica a história das 11,6 milhões de mães solo do Brasil, das quais 7,4 milhões são negras. Ela é referência de determinação para Maurício e responsável por sua conexão com a ancestralidade e a religiosidade, elementos que passam a ser fundamentais na relação do estudante de medicina com M-8.

Cida e Maurício estão sentados em uma cama. Cida cuida de um ferimento no rosto de Maurício.
Cida (Mariana Nunes) cuida dos ferimentos de Maurício (Juan Paiva) (Fonte: Reprodução)

O destaque do filme, sem dúvidas, é o diálogo explosivo que ela trava com seu filho quando ele fala das dificuldades que enfrenta na faculdade e insinua que ela não o entenderia. “Cala a boca que eu sou uma mulher preta falando, não me interrompa!”, diz Cida no clímax da discussão.

Em destaque, Cida com feição brava gritando para Maurício, seu filho, em meio a uma discussão.
“Acho que tem um engasgo muito grande, não só por conta da Marielle, mas por conta de toda uma ancestralidade calada”, comenta a atriz Mariana Nunes (Fonte: Reprodução)

A fala logo nos leva ao último discurso de Marielle Franco na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) antes de ser brutalmente assassinada junto com seu motorista, Anderson Gomes, em um crime que, após mais de dois anos, continua sem respostas.

A figura de Marielle também aparece em um grafitte numa parede pela qual Maurício sempre passa ao retornar para casa. É um lembrete forte ao público das circunstâncias de sua morte e do que ela representa para a sociedade brasileira, edificada na intolerância.

Último pronunciamento de Marielle Franco na Alerj

“Acho que tem um engasgo muito grande [nessa cena], não só por conta da Marielle, mas por conta de toda uma ancestralidade calada”, comenta Mariana Nunes em um debate sobre racismo e representatividade no audiovisual com Jeferson De e Juan Paiva.

Discussão importantíssima de se ver após assistir a M-8, um filme que é essa representatividade no cinema, desde o enredo até o elenco e a equipe por trás das câmeras.

M-8 havia me chamado a atenção pelo suspense, mas vai além disso e surpreende positivamente. Traz o racismo em suas diversas formas e mostra sua complexidade, apontando um cara da turma obviamente racista mas também a universitária branca que acredita ter se desconstruído o suficiente. Tudo isso por meio do olhar de um protagonista negro que foge do estereótipo de favela que insistem em nos contar. É uma redenção, tanto para a história contada quando para o público.

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Aline Naomi
Lado M
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Jornalista formada pela USP, feminista e influencer anônima. Gosto de conhecer e contar histórias e acredito que elas têm o poder de transformar o mundo.