Mamie Till: a mãe que lutou para velar o filho com o caixão aberto

Helena Vitorino
Lado M

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Atenção: a leitura deste texto pode ser perturbadora. A história abaixo é verídica e traz episódios de racismo, assassinato e crime de ódio

Em 1955, nos Estados Unidos, era possível transitar entre dois mundos: de um lado, um universo favoravelmente progressista nas questões sociais, ao norte; de outro, um cenário arcaico, racista e bárbaro, no sul. As Leis de Jim Crow, que marcaram um período de segregação racial institucionalizada no país, traçaram retas bem delimitadas do racismo legalizado norte-americano. Banheiros, bebedouros, assentos, clubes, restaurantes, lanchonetes, igrejas, escolas, parques: tudo era separado para brancos e negros. Quando não havia placas de separação física, muito provavelmente o acesso era restrito aos brancos. E assim como qualquer cidadão poderia atravessar uma estrada e se deparar numa cidade racista e saudosa pela escravidão, uma mãe viajou de Chicago ao Mississipi pelo direito de velar seu filho. Mamie Till, uma jovem de 32 anos, tinha apena umas exigência às autoridades: queria ter o caixão de Emmett Till, seu único filho, aberto e exposto ao público. E o motivo era o mais doloroso e necessário possível que se pode imaginar.

Mamie e Emmett

Mamie Till colocou Emmett num trem para passar as férias com seu tio Wright e primos no Mississipi, em 1955. Na época, Mamie era uma mãe solo. Criava sozinha seu único filho após divorciar-se, por não suportar anos de abuso e a violência doméstica.

Emmett foi para a cidade de Money apenas passar uma temporada de férias, mas nunca retornou a Chicago. Em 24 de agosto, Emmett estava com um primo e amigos num mercado, quando assobiou para Carolyn Bryant, uma mulher branca que passava. A impertinência do garoto incomodou a moça, que relatou o ocorrido a seu esposo, e em poucos dias a campainha da casa de Wright tocou. Roy Bryant e seu meio irmão, J.W. Milan, levaram Emmett a um galpão numa cidade vizinha, onde o mataram após uma sessão de espancamento.

O garoto tinha quatorze anos e era negro. Roy e J.W. tinham 24 e 36, ambos brancos. Emmett teve o rosto completamente deformado pelos golpes, um olho arrancado e perfurações por arma de fogo em todo o corpo. Foi abandonado no rio Tallahatchie, de onde emergiu três dias depois, completamente desfigurado e inchado. Emmett só pode ser reconhecido por usar um anel que havia sido de seu pai, e que sua mãe lhe dera um dia antes de sua viagem ao Mississipi.

Após a identificação, o governo rapidamente embalou o corpo desfigurado e parcialmente decomposto num caixão de pinho para que fosse enterrado às pressas. Mamie Till, no entanto, recusou o enterro e exigiu que a urna fosse enviada à Chicago. Lá ela pôde tomar a decisão mais difícil, corajosa e insuportável de toda sua vida: exigir que o caixão fosse aberto e exposto num velório público, para que todas as pessoas vissem, tirassem fotos e documentassem o que havia se passado com Emmett. Mesmo sendo pressionada por governantes para encerrar logo a história, Mamie e a comunidade negra organizaram um funeral público, onde milhares de pessoas puderam comparecer e ver com os próprios olhos o rosto do garoto, deformado pela violência legalizada. Mamie renunciou à sua privacidade de mãe ao seu sofrimento para lançar ao mundo todas as cicatrizes físicas daquela sociedade racista. “Quero que todos vejam o que fizeram com meu bebê”.

Mamie desolada ao receber o corpo do filho

Roy Bryant e J.W. Milan ficaram presos apenas por algumas semanas. Mesmo após confessarem o crime, foram absolvidos, apenas 22 dias depois do assassinato, indignando toda a comunidade negra nacional e internacional, bem como os defensores do fim da segregação racial. A morte de Emmett Till reinventou o movimento pelos direitos civis no país, espalhando uma fúria e indignação intolerável pela população.

Depois da morte do filho, Mamie Till graduou-se na universidade de Chicago, tornou-se professora e ativista, e engajou-se na luta do movimento para que a história de injustiça racial que resultou na morte de seu filho não fosse em vão. No ano de 2003, uma revista pagou 4 mil dólares aos assassinos de Emmett para que contassem sua versão da história. Os dois homens, já idosos, não expressaram nenhum remorso, relatando inclusive que a morte de Emmett só lhes causara transtorno. Durante a entrevista, Roy afirmou que “se Emmett não tivesse saído da linha, aquilo nunca teria ocorrido”. Roy se divorciou de Carolyn, e viveu uma vida no anonimato, com medo de “uma bala no meio da noite”. Morreu em 1994, vítima de câncer.

As condições que colocaram Mamie Till diante do caixão de Emmett não deveriam se acometer sobre nenhuma mãe e nenhum filho, em nenhuma hipótese. Este crime, no entanto, está longe de ser uma má lembrança do passado. Pelos mesmos motivos que ceifaram a vida de Emmett, outros garotos como Travyon Martin (morto em 2012, aos 17 anos) Tamir Rice(morto em 2014, aos 12), Laquan McDonald (morto também em 2014, aos 17) foram assassinados. O crime era ser negro numa sociedade que ainda reluta em aceitar o genocídio da comunidade negra como uma atividade legalizada e encorajada.

A força de Mamie Till mostrou ao mundo que a abolição da escravatura nem de longe extinguiu o ódio racial das pessoas. Mamie foi uma mãe que adiou seu luto e sua dor em prol da vida de muitos, e que ofereceu sua história, sua imagem e a imagem de seu filho para ilustrarem a luta contra o racismo institucionalizado.

Recentemente, Carolyn, a mulher que Emmett teria assediado, revelou que tudo não passou de uma mentira e que o menino nunca lhe fez nada. Em suas palavras, ela disse que, 62 anos depois, era importante dizer a verdade, pois nada justificaria o que Emmett sofreu.

O movimento dos direitos civis não acabou: ele está apenas despertando.

Originally published at www.siteladom.com.br on February 7, 2017.

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