Manual da Faxineira é um livro de contos sobre a mulher real

Eloane Berto
Lado M

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Embora a literatura feminina tenha crescido nos últimos tempos, o que é muito significativo para a questão da representatividade da mulher, ainda não temos muitas referências de obras que abordem o nosso cotidiano sem a típica romantização da figura da mulher. Assim, a leitura do livro Manual da Faxineira, da escritora norte-americana Lucia Berlin, é uma espécie de alívio, porque lembra que somos feitas de carne e osso, vivendo através de nossas próprias batalhas pessoais e internas.

Os contos da autora apresentam um forte caráter autobiográfico. O primeiro deles se refere a uma certa literatura de fronteira, já que por dificuldades financeiras, a família da escritora deixa os Estados Unidos e se instala no Chile. Assim, através de personagens fictícios, Berlin narra episódios cotidianos de como é ser mulher em cada um desses países, desde a sua infância como uma menina humilde, até sua vida de adolescente de classe média alta em um colégio particular no Chile, como podemos ler no conto “Boa e Má”, através da narrativa de sua amizade com uma professora revolucionária, demonstrando um forte caráter político e social por parte da autora.

Desde de jovem, Berlin tinha o desejo de ser escritora e jornalista, o que a levou novamente a uma mudança, iniciando seus estudos na Universidad de Nuevo Mexico. Exerceu por muito tempo a carreira de docente universitária, porém, após três casamentos desfeitos e sem apoio para criar seus quatro filhos, decide fazer bicos como ajudante em uma enfermaria, rotina descrita no conto Caderno de Notas do Setor de Emergência”, e até mesmo como faxineira, narrativa que dá nome ao livro, Manual da faxineira.

Através de narrativas simples e sinceras sobre o cotidiano, desde diálogos na lavanderia até descrições de movimentos revolucionários latino americanos, Berlin constrói em seus contos uma perspectiva única e natural da vida, englobando desde as minúcias até as grandes questões da existência. Embora seu modo de escrita seja comparado com autores como Tchekhov e Hemingway, possivelmente pela perspicácia de saber exatamente o que deve ser narrado, Lucia Berlin é única e deve ser lembrada pelo seu próprio nome, até porque, diferente dos escritores, os contos são um mergulho no universo de uma mulher, também pelo olhar de uma mulher, sem rodeios ou achismos.

Assim, parece haver um acolhimento especial da autora pela leitora, pois através das inúmeras relações entre mulheres encontradas nos contos de Manual da Faxineira, é possível sentir a narrativa da nossa amizade com nossas próprias mães, professoras, irmãs ou amigas, tanto nos momentos de alegria quanto nos de dificuldade, quando uma precisa estar pela outra acima de tudo.

A sensibilidade ao tratar dessas relações gera diálogos emocionantes como no conto Dor”, em que a personagem não conversa só com sua irmã, mas com todas nós:

“Você quer que eu seja sua irmã? Então me deixe ver! Sim, é horrendo. As cicatrizes são brutais, horríveis, mas elas fazem parte de você agora. E você é mulher, sim, sua bobona! Sem o seu Afonso, sem o seu seio, você pode ser mais mulher do que nunca, você pode ser a sua mulher!”

Manual da Faxineira foi eleito um dos 10 melhores livros do ano pelo New York Times e foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

Originally published at www.siteladom.com.br on July 6, 2017.

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