Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço

Thais Lombardi
Lado M
5 min readOct 31, 2018

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Maria Bonita e Lampião fazem parte da cultura brasileira há décadas, mesmo antes de suas mortes. Hoje em dia podemos ver filmes, marcas de roupas, fantasias de carnaval — Maria Bonita virou sinônimo de empoderamento feminino. Mas, como em muitas histórias, detalhes podem ser esquecidos e o turbulento acaba sendo romantizado.

Mas a verdade é que a vida dos cangaceiros e principalmente das mulheres não era nada fácil. Maria Bonita estava bem longe dos ideais feministas que tanto buscamos.

No livro Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço (Objetiva, 2018), a autora Adriana Negreiros explora a vida de Maria Gomes de Oliveira (1910–1938) ou Maria de Déa, ou como nós conhecemos, Maria Bonita.

Maria Bonita era uma jovem dona de casa que não gostava de sua rotina monótona. Antes mesmo de ser conhecida como a pioneira das cangaceiras mulheres, sua fama não era a das melhores: sempre gostou da liberdade, de rir alto, dançar e sair sozinha sem o seu marido, um escândalo para a época. Pode ser por isso que Lampião se tornou um objeto de desejo.

Transgressora, Maria Bonita era bem humorada e não se preocupava com o que pensavam dela. Apesar de todo esse desejo de liberdade, ela não era tão solidária com as suas companheiras e outras mulheres: concordava com o assassinato de mulheres adúlteras (mesmo ela sendo uma) e não se importava se as outras cangaceiras sofriam abusos.

O valor da mulher no cangaço

Além de pioneira, Maria Bonita foi uma das poucas que virou cangaceira por conta própria: a maioria era raptada, estuprada e violentada durante dias intermináveis. Os cangaceiros eram famosos tanto por seus roubo e mortes cruéis, mas também pelos estupros coletivos em mulheres de qualquer idade:

“ Depois de dar uma surra no marido, voltou-se para a jovem e convocou seus homens a aplicar-lhe um gera- nome que se dava, no sertão, ao estupro coletivo. Por ser o chefe [Lampião] não pegava fila. Era sempre o primeiro a penetrar a vítima. (…) Na avaliação deles, o estupro ocorria porque ‘as mulheres queriam’.”

Outro caso famoso entre a história é o de Corisco e Dadá. O cangaceiro sequestrou a menina aos 12 anos e a estuprava constantemente. Devido aos ferimentos que sofreu, a menina precisava repousar até que seus ferimentos sarassem. Assim, Corisco poderia voltar e repetir o ato novamente. Mais tarde, quando seu marido ficou impossibilitado de atirar, tornou-se chefe do bando, sendo a primeira mulher a utilizar um fuzil e chefiar homens. Morreu em 1994 e foi a última cangaceira a morrer. Apesar de dizer que amava seu marido e ter se tornado chefe de bando, Dadá disse certa vez a uma moça que gostaria de se tornar cangaceira: “Isso é uma vida miserável. Você não queira saber o que é dormir no molhado, andar no espinho, subir saltada, correndo, tomando tiro”.

Outra cangaceira que é sempre citada no livro é Maria Jovina. Ela era constantemente arrastada pelos cabelos. Seu companheiro Pancada a agarrava enquanto ele estava montado em seu cavalo. Mas, não era somente as mulheres do bando que sofriam com a violência deles: havia também cangaceiros que, ao encontrarem mulheres de cabelos curtos e vestidos acima do joelho, as marcavam a ferro suas iniciais na sua nádega, rosto, pernas e busto.

Vida sexual e maternidade

Apesar de toda dificuldade, a vida sexual nos bandos era bastante ativa. As mulheres precisavam tomar cuidado com a sua higiene íntima para agradar seu marido a qualquer hora que viesse, por outro lado, os homens praticavam estupros e também usufruiam de prostitutas, aumentando assim o risco de DSTs, que às vezes eram vistas como sinônimo de virilidade.

O ato acontecia ali mesmo no acampamento e não havia muita privacidade, quem estava ao lado ouvia com clareza o casal vizinho em seus momentos de privacidade.

As cangaceiras não tinham como prevenir uma gravidez e também não poderiam recusar sexo ao marido, então quando não perdiam seus bebês, as mulheres acompanhavam o bando até os últimos dias de gravidez, então eram levadas para coitos (fazendas de confiança dos cangaceiros) e lá davam a luz.

Bebês não eram bem-vindos. O choro denunciaria a posição e também impossibilitaria as atividades criminosas do bando, afinal, quem assaltaria ou mataria com um bebê no colo?

Se sobrevivessem ao parto — e aos cangaceiros — , eles eram entregues rapidamente a outras famílias para que a mãe não fizesse falta ao bando. Na maioria das vezes, Corisco era o responsável por encontrar a família e escrever uma carta explicando o ocorrido.

Não havia resguardo, puerpério ou mesmo amamentação:

“Como fariam todas as mulheres depois de parir e se despedir dos seus bebês, Maria de Déa amarrou um pano forte em volta dos seios, que ficaram imobilizados, apertados e espremidos. Era a maneira de evitar que, túrgidos de leite, manchassem seu vestido”

Robin Hood do nordeste?

No livro Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço, a autora também desmitifica muitas das representações que os cangaceiros ganharam durante o tempo: os de “heróis do sertão”. Na verdade eles atacavam propriedades pobres e tinham ligação com pessoas influentes e latifundiários da época, por isso, ficaram muitos anos impunes e levando tragédia para todo o nordeste, dizimando famílias inteiras com fuzilamentos, torturas e até mesmo deixando mulheres e crianças presas em casa para morrerem de inanição.

Mesmo antes de toda a fama após a morte de seu bando, Lampião e seus cangaceiros atraíram olhares de jornalistas, escritores e governos brasileiros mas também de empresas e políticos estrangeiros. Havia interesse vindo desde a URSS até a Alemanha nazista comandada por Adolf Hitler. Pelo menos duas empresas que conhecemos até hoje gostariam de ter Lampião e Maria Bonita como garotos propaganda: Zeiss e Bayer.

O Jornalista Benjamin Abraão foi autorizado a seguir o bando e realizar filmagens e fotografias para um documentário que não pôde ser exibido, mas as fotografias ficaram eternizadas na revista Cruzeiro.

Morre Maria de Déa e nasce Maria Bonita

A baiana Maria Gomes de Oliveira era chamada desde a infância de Maria de Déa, em referência a sua mãe. Nem a família nem o bando de Lampião a tratavam por Maria Bonita, apelido que só se difundiu após sua morte. Há algumas versões sobre a origem desse nome. Uma delas diz que se tratou de invenção dos repórteres dos jornais do Rio de Janeiro, possivelmente inspirados no filme Maria Bonita, lançado em 1937 e baseado na obra de mesmo nome de Afrânio Peixoto, de 1921. Outra, que teria sido dado por soldados que se impressionaram com a beleza da cangaceira, quando da chacina em que ela foi morta, em 28 de julho de 1938, aos 28 anos.

Após a morte em julho de 1938 é que Maria de Déa recebeu o nome de Maria Bonita e assim seria conhecida até os dias de hoje. Sua vida receberia um toque mais romântico, seus crimes com o amante seriam comparados a Bonnie e Clyde e ela se tornaria mais tarde símbolo de movimentos feministas e transformada em figura empoderadora.

O que fica claro em Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço é que ela era uma mulher de garra e decidida, porém longe de ser a heroína feminista que construíram com o passar dos anos.

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Thais Lombardi
Lado M
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Cineasta, redatora, revisora, feminista e vegetariana. Gosta de ler, gatos, fazer crochê e destruir o patriarcado.