Mulheres e a cultura do estupro: o que pensar quando são elas que estupram?

Lado M
Published in
4 min readDec 6, 2017

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Quando ouvimos falar sobre um caso de estupro, geralmente associamos que a vítima é uma mulher e que o agressor é um homem. Porém, o que pensar quando há casos de mulheres que abusam de outras mulheres, como o da cantora Melanie Martinez?

O ponto inicial é entender que a questão do estupro não é sobre a prática sexual em si. Estupro é sobre relações de poder e controle sobre outras pessoas, independentemente do gênero, da orientação sexual, da idade, da etnia, do estilo de vida, do tipo sanguíneo, de qualquer coisa.

Por isso, por ser uma prática intrinsecamente vinculada ao exercício de autoridade, de comando, de domínio, não é restrita a apenas um tipo social. Todos podem vir a estuprar. Há homens que abusam de mulheres, assim como há mulheres que abusam de homens. Há mulheres que estupram outras mulheres, assim como há homens que violentam outros homens. Isso porque vivemos em uma sociedade com uma cultura do estupro, a qual está presente em todas as pessoas e as afeta desde a infância, ainda que não da mesma forma.

Mulheres que cometem estupros — seja contra outras mulheres, seja contra homens — não podem ser isentas de culpa. Estupro é crime e deve ser punido, seja o agressor um homem ou uma mulher.

A cultura do estupro é uma criação masculina

Quando um caso de um estupro cometido por mulher vem à tona, muitos homens oportunistas aproveitam a situação para dizer que não são os responsáveis pela cultura do estupro, e sim as mulheres. No entanto, apesar de deverem ser responsabilizadas pelas suas atitudes individuais, as mulheres não podem ser responsabilizadas pela vigência da cultura do estupro na sociedade.

A cultura do estupro foi criada por homens. Seu nascimento data da Era Neolítica, quando os homens, por meio da criação de animais, observaram o papel dos machos na procriação e passaram a entender o seu papel reprodutivo como uma forma de superioridade. Segundo a psicanalista Regina Navarro Lins, na obra O Livro do Amor, até o Paleolítico, período anterior ao Neolítico, “Desconhecia-se o vínculo entre sexo e reprodução. Os homens não imaginavam que tivessem alguma participação no nascimento de uma criança, o que continuou sendo ignorado por milênios. (…) Embora tudo indique que a mulher tivesse mais poder do que o homem, não havia submissão”.

No entanto, quando homem descobre o seu papel sexual, as coisas mudam. É quando surgem as sociedades patriarcais, nas quais os homens são o centro de tudo e as mulheres são vistas como inferiores. Segundo a psicanalista:

“Quando o sistema patriarcal se estabeleceu entre nós, há aproximadamente 5 mil anos, dividiu a humanidade em duas partes — homens e mulheres — e colocou uma sobre a outra. Determinou com clareza o que é masculino e o que é feminino, subordinando ambos os sexos a esses conceitos. (…) Partindo da opressão do homem sobre a mulher, a mentalidade patriarcal se estendeu a outras esferas de dominação: homens mais fracos, raças, nações e a própria natureza. Durante esse período, a cultura dominada pelo homem, autoritária e, em geral, violenta, acabou por ser vista não apenas como normal, mas também como adequada”.

A cultura do estupro e as mulheres

Nesse sentido, por viverem em uma sociedade patriarcal que impõe a violência como norma para todos os seus integrantes, podemos entender as mulheres agressoras não como responsáveis pela cultura do estupro, mas sim como reprodutoras desse comportamento. Isso porque, segundo estudo apresentado na Scientific American, 96% das mulheres que cometem crimes sexuais foram abusadas por homens. Muitas vezes, os abusos cometidos por elas foram realizados, inclusive, junto com os seus abusadores.

Segundo dados das Nações Unidas, em todo o mundo, pelo menos 1 a cada 3 mulheres será vítima de algum tipo de abuso sexual. De acordo com a pesquisa Estupro no Brasil, lançada neste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 94,1% dos casos cometidos no Brasil são praticados por homens e 3,3% por mulheres. No entanto, em todo o mundo, pouquíssimos casos de abuso são reportados às autoridades. No Canadá, um dos países mais avançados quanto à igualdade de gênero, somente 10% dos casos de estupro são denunciados e somente 0,3% dos agressores são identificados. Desse modo, as porcentagens relacionadas aos abusos cometidos por mulheres poderiam ser maiores se mais casos fossem denunciados.

Muitas vezes, as mulheres que foram abusadas sexualmente por mulheres hesitam em fazer a denúncia por acreditarem que suas experiências não são tão graves quanto as cometidas por um homem. E muitos homens que já sofreram agressões por parte de mulheres também acreditam que, se procurarem por ajuda, serão ridicularizados. É muito importante entender que os impactos da violência sexual cometida por mulheres não é menos devastadora que a cometida por homens, e todas as vítimas, independentemente do gênero, devem receber apoio.

O papel do feminismo contra a cultura do estupro

Enquanto feministas, nosso papel não é “passar pano” nem fazer “vista grossa” para atitudes de outras mulheres. Nosso objetivo aqui é informar, educar e aprender. Isso inclui dar puxões de orelha, apontar erros e também denunciar crimes quando necessário.

É somente denunciando os casos de abuso que poderemos, aos poucos, acabar com a cultura do estupro. Independentemente do fato de os agressores serem homens ou mulheres, todas as vítimas de abuso sexual podem vir a desenvolver transtornos psicológicos e doenças físicas que podem comprometer de maneira determinante as suas vidas. Por isso, é papel do feminismo se posicionar contra qualquer manifestação da cultura do estupro, mesmo quando ela, infelizmente, é praticada pelas garotas.

Originally published at www.siteladom.com.br on December 6, 2017.

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