Foto: Claudia Baartsch / Agencia RBS

Mulheres e o padrão de beleza durante a quarentena

Ane Cristina
Lado M

--

Fazer chapinha, usar maquiagem, tirar cutícula, depilar com cera. Esses são só alguns dos vários rituais de beleza que mulheres realizam— não apenas para se encaixarem num padrão de beleza pré-estabelecido, como também para se sentirem bem consigo mesmas.

Neste ano, vivemos uma realidade sem precedentes. O mundo enfrenta uma pandemia pelo novo coronavírus e a principal recomendação das autoridades mundiais de saúde é o isolamento social. Sem poderem sair de casa, muitas mulheres deixaram esses rituais de lado, experimentando, quase que ironicamente, uma liberdade incomum nos dias normais.

Esse é o caso da comissária de bordo Isabela Veríssimo. Em sua rotina de trabalho, unhas, cabelos e maquiagem devem estar milimetricamente impecáveis: “Tem um padrão sobre penteados. O cabelo curto tem que estar na altura da gola da camisa. Para usar rabo-de-cavalo, precisa estar na altura do sutiã e, se for maior do que isso, só é permitido usar o cabelo em coque. E não pode ter um fio solto, se não tem reclamação.”

Foto cedida por Isabela Veríssimo

Com o início da pandemia e a diminuição da quantidade de voos, ela tirou uma licença de três meses do trabalho. Em casa, Isabela interrompeu os rituais que costumava realizar todos os dias: “Para mim, também foi um momento para descansar. Eu faço isso todo dia, então cansa. O máximo que eu faço é arrumar o cabelo.”

Mas isso não significa que a sensação proporcionada por essa interrupção é boa: “É engraçado, porque às vezes, eu sinto falta. Há dias que eu me olho no espelho e penso ‘eu tô horrorosa’. Não me sinto bem por não estar arrumada. A gente foi ensinada que, para ser bonita, temos que estar maquiadas, com o cabelo arrumado, magras. Dentro de um padrão, mesmo.”

Ditadura da beleza

Quando crescemos dentro de uma cultura com determinados costumes — como a busca constante por uma aparência baseada em um padrão de beleza específico, a chamada ditadura da beleza — recebemos todos os estímulos para acreditar que aquele modo de viver é o “normal” e “correto”. É o que explica Franciele Medeiros, mestre e doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Salamanca, na Espanha.

“As pessoas procuram um sentimento de aceitação dentro daquele meio e daquele padrão, que foi criado ao longo do tempo. É muito difícil a gente se libertar e se desconstruir, porque estamos naquele meio. Nem percebemos o impacto dessa influência, que é muito forte no Brasil desde os primórdios da colonização.”

Segundo Franciele, há uma linha tênue entre “o que faz bem para mim e o que faz bem para os outros”.

“Vai depender de como cada mulher percebe essa sensação. Porque há muitas mulheres que dizem que seguem esses rituais porque se sentem bem, mas tem uma linha tênue que divide isso. Às vezes o que a pessoa busca como ‘se sentir bem’, não são esses rituais propriamente ditos, mas o sentimento de aceitação em relação àquele meio que ela vive.”

Júlia Santana também interrompeu quase todos os cuidados que costumava ter com a aparência durante a quarentena (entre fazer depilação, unhas, sobrancelha, chapinha no cabelo e usar maquiagem, ela só manteve o cuidado com as unhas). A estudante de políticas públicas percebeu que gosta de si mesma dos dois jeitos, mas acredita que, com o fim da pandemia, irá retomar todos esses cuidados.

“A minha relação com o meu corpo continua a mesma, mas sinto que não tenho uma obrigação de fazer alguns rituais que eu fazia mais por convenção social. Acredito que, quando a vida voltar ao normal, irei retornar com a frequência anterior de todos os cuidados. Não por obrigação, mas ainda não me libertei dessa convenção social. Eu me sinto bem do jeito que estou, mas também me sinto bem da outra forma”, explica.

Algumas mulheres aproveitaram esse período para reavaliar alguns desses costumes, como Camila Szmalko. Ela sempre tomou cuidados para que a pele parecesse mais “uniforme”, com o uso de maquiagem. Durante a quarentena em casa, a publicitária parou com o uso desses cosméticos.

“Comecei a valorizar algumas características da minha pele. Tenho um pouco de sarda e de vermelhidão e acho que são coisas que eu não vou mais buscar esconder no futuro. Antes eu pensava ‘vou sair, a obrigação é passar um rímel e arrumar a sobrancelha’. Hoje, acho que não faz tanta diferença. De vez em quando, te coloca um pouco mais pra cima, mas não sei se seria ainda uma obrigação.”

Mariangela de Castro mudou seu olhar em relação aos seus pelos. Sendo filha de depiladora, ela sempre depilou todo o corpo com cera. Nos últimos meses, morando sozinha na Espanha, ficou totalmente isolada em casa.

“Durante a quarentena eu deixei meus pelos crescerem e passei a gostar deles. Agora podemos sair na rua e eu estou usando shorts e vestido com as pernas e axilas à mostra, sem nenhuma vontade de me depilar e sem nenhuma vergonha dos pelos. Eu me sinto bem comigo mesma e acho que essa foi uma mudança muito legal.”

Foto cedida por Mariangela de Castro

Temos opção?

“A verdadeira questão não tem a ver com o fato de nós mulheres usarmos maquiagem ou não, ganharmos peso ou não, nos submetermos a cirurgias ou as evitarmos, transformarmos nosso corpo, rosto e roupas em obras de arte ou ignorarmos totalmente os enfeites. O verdadeiro problema é a nossa falta de opção”

— Naomi Wolf em “O Mito da beleza”, livro publicado há quase três décadas.

Mesmo sendo “livres” (e haja aspas) para fazer o que quisermos, nenhuma mulher parece verdadeiramente livre para existir com o seu corpo natural: sem interferências de cosméticos, alisamento, tintura no cabelo, depilação, rituais de skincare e até procedimentos cirúrgicos. Não é a toa que, só isoladas em casa, sem ninguém nos vendo, nos sentimos confortáveis para existirmos como somos.

Acabar com o padrão de beleza é algo não só revolucionário como utópico. É difícil imaginar todas as mulheres parando — para sempre — a realização desses rituais. Por ora, o que nos resta, é trabalhar como nos sentimos em relação a nós mesmas. No fim, o significado de “beleza” vai ser sempre complexo. Assim como é o significado de “liberdade”.

--

--

Ane Cristina
Lado M
Writer for

baiana-paulista, quase-jornalista, sei um pouco de tudo