Mulheres Espíritas contra o abuso

Helena Vitorino
Lado M
Published in
3 min readDec 12, 2018

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Nos últimos dias, o Brasil foi surpreendido por denúncias de crime sexuais, supostamente cometidos por uma figura de destaque nacional e internacional, o médium conhecido como João de Deus. A comunidade espírita, assim como todo o Brasil, recebeu com espanto os relatos dolorosos de mulheres que teriam sido estupradas pelo médium ao buscarem tratamento espiritual, em sua casa de acolhimento na cidade de Abadiânia, no interior de Goiás. Desde que a fala de uma das vítimas veio a tona, pelo menos outras 200 mulheres se encorajaram para falar e registrar denúncias sobre ataques que também sofreram pelo médium.

O Brasil é o país com o maior número de espíritas do mundo, considerado pela comunidade espírita como A Pátria do Evangelho. Em nosso contexto nacional, os centros espíritas que seguem a doutrina decodificada por Allan Kardec e se espalham por todo o Brasil oferecendo atendimento espiritual devem seguir estritamente os princípios da filosofia espírita, de caridade, amor ao próximo, ética social e responsabilidade moral. Qualquer atividade que ocorra fora destes guias, não pode ser considerada como pertencente ao movimento espírita.

Em referência ao serviço prestado por João de Deus e pelos “médiuns curadores” (aqueles cujo magnetismo e mediunidade são treinados para auxílio voluntário no tratamento de enfermidades), é necessário destacar que, conforme dito pelo radialista Cesar, da rádio espírita Boa Nova, “a mediunidade é um condição orgânica que independe da moral do indivíduo”. Em outras palavras, é possível ser médium, ter um canal de conexão amplo com o mundo espiritual, e mesmo assim não agir conforme os princípios da ética e da moral. A questão da mediunidade e da retidão de caráter, embora independentes entre si, devem ser ponderadas por qualquer indivíduo que opte pelo caminho do espiritismo segundo Kardec e Jesus Cristo. A doutrina espírita não compactua com abusos da aptidão mediúnica para fins de benefício próprio, subjugação de vulneráveis nem hierarquização da fé.

Neste sentido, este manifesto se propõe a oferecer apoio e solidariedade às diversas mulheres que possam ter experimentado situações de abuso, assédio e estupro dentro das dependências de um local que deveria prestar socorro e acolhimento, por alguém que deveria ser condutor de bem-estar, consolo e respeito.

Como mulheres, e como mulheres espíritas, não nos é plausível descartar que este escândalo ocorra justamente no seio de nossa doutrina para nos lembrar que o charlatanismo e os falsos-profetas podem habitar também nossas sessões de atendimento; e para nos alertar de que, apesar de sermos espíritas e confiarmos nas leis e na justiça de Deus, não podemos nos desobrigar de atender às leis dos homens, inclusive quando somos nós o alvo da questão investigada. Que este incidente nos sirva de reflexão e contemplação para o que ocorre dentro de nossas casas, e para que reforce nossos compromissos com a ética e o respeito à comunidade.

Condenamos veementemente a postura da assessoria do médium João de Deus, que culpabilizou o “feminismo” como responsável pelo relato das vítimas, desacreditando sua importância como um ato guiado para ferir a reputação do médium. Relembramos que o feminismo tem berço na mesma nação que o espiritismo, a França, e que as duas escolas são orientadas pela liberdade de pensamento de seus seguidores, pelo uso do livre arbítrio independente da condição do indivíduo, e pela auto-afirmação do ser pensante. Neste sentido, o feminismo e o espiritismo têm muito mais em comum entre si do que possíveis divergências.

Seguindo o recente pronunciamento da Federação Espírita Brasileira, fazemos coro de que práticas assistenciais não devem ser realizadas em caráter individual, por médium e assistido, sem a presença de uma terceira pessoa. Os trabalhos espíritas que ocorrem dentro da doutrina não envolvem manipulação física que constranja, que submeta ou que humilhe os assistidos. Orientamos fortemente que qualquer assistido que se sinta desrespeitado dentro de uma casa espírita procure apoio tanto dos dirigentes da instituição quanto das instâncias legais, para registro de denúncia coerente.

Como mulheres, nos solidarizamos com amor e empatia, vibrando e desejando que aos machucados, venha a cura. Nos compete a responsabilidade de orientarmos, dentro de nossos conhecimentos, que a verdade e o respeito devem sempre prevalecer em qualquer situação. Que a reflexão venha em nosso próprio serviço, e que tenhamos força e voz para nunca nos abater.

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