Não Devore Meu Coração traz personagens femininas estereotipadas

Helena Vitorino
Lado M
4 min readNov 24, 2017

--

Não Devore Meu Coração aborda os conflitos remanescentes entre brasileiros e paraguaios que habitam a região das fronteiras. Ele foca na sensação de remontar aos sentimentos antigos oriundos da Guerra do Paraguai, agora contextualizados em novas disputas, como as atividades ruralistas versus propriedade da terra dos índios, ou rachas clandestinos disputados por paraguaios e brasileiros. Apesar de visualmente e auditivamente belo, o filme traz personagens femininas irreais, estereotipadas e cansativas sob o ponto de vista da desconstrução da mulher indígena como paradigma de sedução, misticismo e selvageria.

O enredo

Joca (Eduardo Macedo) é um jovem pré-adolescente que vive com a mãe (Cláudia Assunção) e o irmão Fernando (Cauã Reymond) em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul. Imerso num mundo infantil, ele fantasia com o amor platônico que sente por Basano, La Tatuada (Adeli Benitez), uma jovem indígena paraguaia que vive do outro lado do Rio Apa. Junto de seus amigos, Joca persegue a índia para declarar seus amores adolescentes, e é recebido sempre com um olhar gélido e ar de superioridade.

A rejeição de Basano se pauta na crença de ser uma Rainha, a Soberana do Rio Apa, cujos amores seriam destinados unicamente à natureza, e não aos homens. Perturbado pelo amor não correspondido, Joca busca heroísmo na presença do irmão Fernando, um agroboy e membro de um clube de motociclistas, que volta para casa todas as noites com uma garota diferente. Os conflitos da terra e os revanchismos de nacionalidade vão surgindo com o aparecimento de corpos de guaranis-paraguaios às margens do Apa. Os cadáveres fazem ressurgir rivalidades antigas, que vão atingir seu cume nos rachas entre os grupos de motociclistas brasileiro e paraguaio.

O romance juvenil de Joca e a tensão dos conflitos nacionais são o pano de fundo de um filme que promete trazer conteúdo histórico sob a ótica de um garoto de 14 anos. Mas, ao contrário do que promete, Não Devore Meu Coração é uma reprodução infanto-juvenil insossa, que reproduz estereótipos muito batidos e não desperta nenhuma faísca de emoção ou heroísmo que justifique a temática tão complexa e necessária como a guerra entre o Brasil e o Paraguai.

Basano

O maior exemplo de estereótipos do filme é a jovem Basano, uma garota guarani. Ela apresentada de maneira insondável e apocalíptica e é apresentada na trama com os tradicionais estereótipos das personagens indígena nas produções nacionais: misticismo heróico, poder esotérico sobre a natureza, capacidade de manipulação do pensamento dos homens comuns.

Essa ideia afasta Basano de ser uma garota comum. Ainda que tenha a mesma idade de Joca, seu enamorado cansativo, ela se comporta já como uma mulher, com vontades e poderes muito peculiares que não se assemelham em nada a uma garota de quatorze anos. Em suma, Basano é o ideal pré-concebido de mulher indígena, que não distingue adolescência ou maioridade, mas a joga para um campo de adultização irreal, pavimentada por sua arrogância e poder de manipulação do garoto.

Outro exemplo de estereotipo da mulher indígena é a personagem Índia, que homogeneamente como Basano, sintetiza a mesma ideia de misticismo, superioridade e manipulação, e não permite aos personagens guaranis que experimentem sentimentos reais, mas, ao contrário, os encerra num lugar comum do imaginário reservado aos indígenas. É possível de dizer que tanto Basano e Índia, quanto Joana, a mãe de Joca e Fernando, são tentativas mal sucedidas de criação de “personagens femininas fortes”, e o infortúnio dessa tentativa se dá por um motivo simples: são heroínas concebidas pela ótica masculina, o que as torna caricatas, irreais e enfadonhas.

Não Devore Meu Coração poderia ser bom, mas é ruim

Dentre as falhas técnicas do filme, o que mais decepciona é a falta de conexão dos personagens: o sotaque carregado, característico de Bela Vista, é entoado pelos atores alternadamente, o que não contribui para a ambientação do expectador. Ora falado, ora não falado, dá a impressão de que os personagens não pertencem àquele lugar, e quando carregam o sotaque na voz, é como se tivessem lembrado que precisavam caracterizar a fala. A participação do cantor Ney Matogrosso, que a princípio é convidativa a quem não tenha assistido, não impacta e nem converge com a trama, causando impressão de ter sido propositalmente criada só para tê-lo em cena, ainda que por menos de dois minutos.

No geral, vale ressaltar a beleza em que foram construídas as cenas das corridas de motocicletas, casando perfeitamente com a trilha sonora dos anos 1980. Neste momento, é possível esquecer o romance fraco entre Joca e Basano e os erros de expressão do sotaque sul-mato-grossense, para viajar na velocidade cintilante confrontando com música de emoção.

Apesar de prometer muito mais do que pode entregar, Não Devore Meu Coração vale o ingresso se o expectador tem algum tipo de identificação com o tema, alguma veia regional. Agora, para fins de conhecimento sobre a guerra do Paraguai, ou simplesmente para quem não aprecia personagens banalmente construídos, a melhor opção talvez seria ficar apenas nos trailers, consultar um documentário ou livro de história.

Originally published at www.siteladom.com.br on November 24, 2017.

--

--