Não existe amor nenhum em um relacionamento abusivo

Thaís Matos Pinheiro
Lado M
Published in
5 min readJul 17, 2017

“Ele me forçou a ter sexo anal com ele. Eu não queria, eu tinha aversão. Quando senti dor, pedi para que parasse e ele não parava. Sentia dor, muita dor. Quando percebi que aquilo era um abuso, ele me fez pensar que eu também quis.”

Ela é Bianca*. E ele, o namorado dela.

Num primeiro momento, pode parecer estranha a associação entre assédio, abuso, estupro e relacionamentos. Primeiro, existe aquela premissa de que num relacionamento a dois, um pertence ao outro. Depois, que entre quatro paredes vale tudo. E por último, que em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher.

Tratamos relacionamentos como se fossem terra sem lei. Como se toda a legislação que paira sobre o mundo real tivesse de ser deixada do lado de fora da porta do apartamento do casal. Bater na esposa não se trata de violência doméstica, só do poder natural e inquestionável do homem sobre a SUA mulher. Obrigar a namorada a fazer sexo anal sem que ela tenha vontade também está protegido pelo código dos namorados que podem tudo.

Esquecemos que sexo forçado é estupro. Que bater em mulher é crime. E que, para além da questão jurídica, existe a humana. E essa não vai ser ressarcida com prisão, indenização ou qualquer outra pena estabelecida.

Os estágios do assédio

É óbvio que não há regras para que um assédio ocorra. Nem existe um passo a passo que permita prever quando ele virá. Tampouco um remédio que funcione para todos os casos igualmente. Da mesma maneira que cada relacionamento é singular e único, o assédio sexual dentro dos relacionamentos também o são e podem se manifestar de modos diversos.

Para Bianca, primeiro veio a pressão psicológica. “Ele me fazia pensar que através daquilo eu não o perderia para ninguém”. Após o assédio moral, as ameaças e chantagens, veio o abuso físico. “Achei que o único jeito de sustentar o meu relacionamento seria ceder às vontades dele. Quando percebi estava em uma relação sexual sem prazer e consentimento”.

Sair de um relacionamento abusivo é muito difícil. Primeiro, porque durante o relacionamento não se tem consciência de que ele é de fato abusivo. Segundo, porque o nosso psicológico nos faz pensar que também tivemos responsabilidade pelo que aconteceu. “Eu me sentia presa, presa a algo que eu “permiti”, que deixei acontecer por medo de perder uma pessoa que só pensava no seu próprio prazer”, avalia Bianca.

Por que, afinal de contas, não pedir socorro quando algo assim acontece? Bianca responde: “nunca pedi ajuda por vergonha”. A maioria das vítimas de abusos sexuais se sentem , além de envergonhadas, culpadas, o que impede a busca por ajuda e mesmo a denúncia. As entidades que prestam assistência a esse tipo de violência revelam a maior parte das vítimas não possuem assistência médica, policial ou jurídica. Fica para elas o peso de lidar com isso sozinhas.

As consequências de uma relação não consentida se revelam em diversos aspectos. Além dos traumas psicológicos, existem problemas físicos que a relação pode acarretar, como doenças sexualmente transmissíveis, lesões e mesmo gravidez indesejada. Elas também vieram para Bianca. “Passei a ter problemas ginecológicos por um ato que eu não queria, que não fiz nada para acontecer e com o qual não senti prazer”.

Prática enraizada

Em uma pesquisa realizada pela Organização Mundial da Saúde, o abuso físico praticado por um parceiro em algum momento na vida até os 49 anos de idade foi relatado por 13 a 61% das entrevistadas, de acordo com o local do estudo, sendo maior ou menor em diferentes países e regiões. Os números são mais expressivos na pesquisa realizada pelo Instituto Avon, em que 74% dos homens entrevistados declararam já terem obrigado a parceira a fazer sexo sem vontade.

Apesar de existirem poucos dados sobre o tema, ele é real e afeta a vida de centenas de mulheres e meninas. Juliana* é uma delas. “Foi meu primeiro namorado. Eu tinha 15 anos e ele, 17. Logo no começo do namoro, eu estava na casa dele. Ele me levou em uma casa abandonada no condomínio e começou a me masturbar com muita força. Eu não queria. Ele continuou. Ele rompeu meu hímen e começou a sangrar. Foi assim que eu perdi a virgindade. Na hora eu fiquei em choque. Voltamos pra casa dele e eu fui tomar banho. Comecei a chorar no box, pensando ‘meu deus, por que eu deixei isso acontecer?’”.

Era difícil para Juliana e ainda é difícil para milhares de garotas a percepção de que elas não deixaram que nada acontecesse. Isso se deve principalmente à culpabilização da vitima que joga todo o peso sobre as mulheres, eximindo os homens da responsabilidade. Minha mãe trabalha no fórum, na vara criminal. Quando menor, ela sempre me alertava: “não sai com essa roupa, filha, porque nos processos de estupro eles sempre mencionam a roupa da vítima”.

A pesquisa do Instituto Avon revela ainda que a agressão sexual não costuma acontecer apenas uma vez. Ela se torna recorrente. Juliana conta como viveu essa progressão . “As coisas pioraram quando ele fez 18 anos e ganhou um carro. Ele podia me levar onde ele quisesse e fazer o que quisesse comigo lá dentro. Um dia que ele me chamou pra ir no cinema. Eu vi que ele estava fazendo um caminho diferente. De repente ele parou o carro na frente de um drive-in. Eu não sabia o que era. Ele me explicou que era um lugar onde as pessoas iam pra transar dentro do carro. Eu era menor de idade. Isso começou a acontecer todo final de semana. Tinham dias que eu não queria. Tenho várias lembranças da minha tristeza no meio da transa. Era horrível. Houve uma vez em que quase vomitei.”

A baixa autoestima das meninas, muitas vezes atrelada a depreciação sofrida por colegas e pelos próprios parceiros, as deixam mais vulneráveis para aceitar caladas as agressões sofridas. Juliana desabafa “Eu sempre tive problema com autoestima, eu era gordinha e isso me travava. Então, o fato de eu estar encontrando um cara que estava interessado em mim era demais. Eu pensava que não podia dizer nada porque perderia a minha única chance de ter alguém”.

As histórias da Juliana e da Bianca são também as histórias das mulheres que compõem o 69% de vítimas de abusos por parceiros no mundo — e de todas as outras que não entraram nessa estatística. Quando eu pergunto pra elas o que pode ser feito para reagir a uma situação dessas, Juliana me diz uma verdade incontestável e muito ignorada: A mulher não é ensinada a dizer não. Precisamos aprender a dizer não.

Isso não tira do agressor sua culpa e nem transfere parte da responsabilidade para a mulher abusada, apenas alerta para o fato de que é necessária uma educação mais empoderada e libertadora para as meninas, as adolescentes, as jovens, as de meia idade. Enfim, para todas as mulheres.
*os nomes foram alterados para preservação da identidade das entrevistadas.

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