Não sou mercadoria: não me chame de “Morena Tipo Exportação”

Helena Vitorino
Lado M
Published in
4 min readDec 9, 2016

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(Ilustração: Natalie Majolo)

Na primeira vez que me disseram que eu era uma “morena tipo exportação”, eu senti um pesado carimbo, daqueles que usam pra botar preço nos produtos, timbrando a minha testa. Eu ainda era jovem demais pra entender toda a hostilidade contida nessa frase, mas não jovem o suficiente pra não saber que “morena tipo exportação” é um eufemismo muito do sem vergonha para “Jezebel de Cor”.

Quem me disse isso tinha no rosto um sorriso malicioso, e me convidou a observar nessa infâmia não um insulto, mas um elogio. Sim, um elogio, uma “credencial” de que eu deveria me orgulhar, já que o meu greendcard estaria garantido, porque eu era do “tipo exportação”. E ainda acrescentou com ênfase nas palavras: “os gringos piram na sua cor”.

Ah, os gringos… A sociedade ensina às mulheres que, se os homens nacionais valem pelo menos o dobro do que nós somos, os gringos valem o triplo ou até mais. Aquela nossa mania de idolatrar tudo que vem de fora se eleva a níveis inimagináveis quando o assunto é “garantir o gringo”. E a sociedade machista realmente acredita que as “morenas” ou “mulatas tipo exportação” estão em grande vantagem na “busca implacável pelo marido estrangeiro”. Bem, se por “vantagem” podemos entender o a objetificação hiper sexualizada, o desprezo e a exploração sentimental, então aí sim, nós, as mulheres negras, temos larguíssima “vantagem” na corrida pelo gringo.

O “rótulo sexual” é uma infeliz associação a praticamente todas as mulheres brasileiras no exterior. Essa marca pode ser ainda mais pejorativa quando a mulher em questão, além de ser brasileira, é negra. Há incontáveis relatos na internet de mulheres em viagens a trabalho, lua de mel, intercâmbios ou passeios de férias que foram assediadas sexualmente e, algumas vezes, confundidas com prostitutas — tudo isso puramente por serem brasileiras.

ATENÇÃO: Isso não é um texto que conclama contra os estrangeiros. Isso é um convite à reflexão de como o termo “morena tipo exportação”, assim como outros tantos, alguns até piores, contribuem negativamente para a imagem da mulher brasileira em todo o mundo. E se você é mulher e já viajou ao exterior ou conheceu estrangeiros no Brasil, sabe do que eu estou falando. Não é incomum que eles incorporem essa “ideia” da “morena lasciva e liberal” e abordem as brasileiras com todo tipo de liberdade desconfortável.

Eu já namorei um gringo, e generalizar minha experiência seria realmente ignorante. Mas conheço outras tantas brasileiras, negras como eu, que já namoraram gringos. E essas brasileiras conhecem ainda algumas outras brasileiras. E num balanço de nossas experiências, algumas características surgem em 99% dos casos: uma boa dose de objetificação sexual, ainda que bem disfarçada com palavras doces, como os idealizadores do tipo “eu sempre quis transar com uma brasileira”; e um desprezo desqualificante ao relacionamento e ao sentimento, como se a “mulher negra” não fosse digna de ter algo sério, mas servisse apenas para distração carnal. Também conheço brasileiras que encontraram em homens estrangeiros o grande amor de suas vidas, e são extremamente felizes, mas praticamente 100% delas experimentou situações desagradáveis ao conhecer suas famílias, com episódios de racismo, desrespeito, e cantadas abomináveis. Tudo isso só por conta da nacionalidade e da cor.

Todo esse apanhado de histórias de brasileiras ofendidas por estrangeiros não me faria lembrar de outra coisa que não fosse a jovem dançarina (não me perdoo por não ter encontrado seu nome) no clipe da música “Couleur Café”, de Serge Gainsbourg, de 1965. Enquanto perambula ao redor da moça, semi-nua, analisando com ares de estrangeiro seu corpo balançante e o riso inseguro, ele canta o quanto gosta da “cor café”, fazendo alusão à pele dela. Mas tão rápido quanto vem, ele vai embora, ressaltando que aquele “amor sem filosofar passa tão depressa quanto um café”, deixando a moça sozinha, com cara de “ué”. Seria o amor dela indigno de filosofar, bom mesmo só para os dez minutos do cafezinho?

No fim das contas, eu não nasci pra ser enfiada num contêiner endereçado ao estrangeiro, muito menos vim com código de barras para ser vendida à título de “morena tipo exportação”. Quem vê a cor de pele negra como atrativo pra gringo não sabe o quanto dói essa associação, que te coloca na mesma posição de um aperitivo exótico. Se você usa essa expressão e acha graça nela, saiba que o estereótipo da “negra que serve apenas para favores sexuais”, além de racista e misógino, é escravocrata.

Não, eu não sou “Morena tipo Exportação”. Há muita complexidade, conteúdo, sangue e sentimento em mim que ultrapassam as fronteiras da mercadoria, e não podem ser empacotadas e vendidas para consumo em prateleira.

Originally published at www.siteladom.com.br on December 9, 2016.

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