Nenhuma mulher é só um corpinho bonito

Lado M
Published in
4 min readSep 28, 2015

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Viver em uma sociedade sexista, definitivamente, é um porre, a começar pelos padrões de beleza. Se você não se adequa a eles, é bombardeada por todos os tipos de infortúnios que já bem conhecemos desde muito cedo. Não obstante, aquelas que estão “mais ou menos por ali” também não se encontram muito mais acalentadas. Não que eu esteja aqui para dizer “pobrezinha dessa moça magérrima, de olhos claros, bumbum definido, padrão Barbie Girl: vamos acender algumas velas e fazer uma reza porque ela deve sofrer muito”; não. O ponto dessa conversa é outro.

Basta olharmos para o alarde feito pelos veículos da mídia quando é descoberta a formação em Harvard e a fluência em seis idiomas de Natalie Portman; que o QI da colombiana Shakira é de 140; ou que a ex-panicat Nicole Bahls é graduada em Jornalismo. Basicamente, é como se todos interrompessem suas atividades para berrar ao mundo “vejam só que surpreendente, elas não são só um corpinho bonito: elas também têm um cérebro!”.

A pior parte disso, ouso dizer, é aquela em que as pessoas ainda se deixam espantar por uma frivolidade dessas, como se o século 19 ainda não tivesse chegado e as mulheres ainda não tivessem começado a ter o direito do acesso à leitura.

Acontece que a velha dicotomia machista é bastante persistente e vai para além do “ou-é-puta-ou-é-mal-comida”, dando origem a um pensamento que categoriza as mulheres em dois grupos extremamente estereotipados: o das bonitas e burras e o das feias e inteligentes.

Quem nunca ouviu, em alguma roda de conversa tipicamente masculina, um daqueles papos sobre qual desses dois tipos de mulheres seria o ideal para curtir e qual seria mais apropriado para um lance mais sério? Essa relação entre corpinho bonito e capacidade cognitiva é tão ridícula que, não raro, ouvimos a elucidação de argumentos (e esse é um exemplo de uma fala real) que versam sobre uma suposta facilidade de submissão por parte da mulher tida como bonita e burra e sobre o risco e o esforço de se ter por perto uma mulher que raciocine demais. Quer dizer, isso quando eles são capazes de admitir que a mulher pode, igualmente ao homem, desenvolver habilidades que possam vir a representar algum risco para eles!

De toda e qualquer forma, essa noção de posse sobre o que podemos ou não ser é tamanha que a menor demonstração de racionalidade e autonomia causa estranhamento, e, para isso, vale lembrar que não precisamos sequer nos enquadrar ao que é e não é aceito como belo, basta ser mulher.

Outra questão a ser colocada é o fato de conquistas individuais serem constantemente atribuídas ao nosso “corpinho bonito” ao invés do mérito próprio — afinal, se uma mulher ganha um cargo mais elevado no trabalho é porque ela “é gostosa e provavelmente vai dar (ou já deu) para o chefe”. Mas me desculpe te informar se a aptidão feminina te parece impossível ou se é muita areia para o seu caminhãozinho: ao contrário do que os seus olhos podem ver, nenhuma mulher é só uma bunda, moço.

O cerne do problema é, mais uma vez, estarmos lidando diretamente com o patriarcado, uma instituição mais velha e inflexível do que a crença da sua avó de que leite com manga mata. Nesse sentido, qualquer coisa que relute em contrariar os atributos sociais alocados ao sexo feminino — a exemplo do culto à domesticidade e aos modos que devemos ter até na hora de respirar — é mal recebido.

Tornando a fazer um comparativo histórico, a imutabilidade dos hábitos patriarcais pode ser constatada quando vemos que a mesma rechaça para com a mulher que ousa se destacar por outras coisas senão pelo que agrada o fetichismo macho, é a mesma que se fazia presente há dois séculos atrás, quando começaram a surgir as primeiras autoras de relatos de viagem (um gênero constituído por crônicas, correspondências e outras formas de registro que contam sobre determinada região ou país). Com o advento das viajantes, assim como eram conhecidas, em um espaço onde só havia homens, esses livros de relato começaram a emergir para o discurso público, o qual também era predominantemente ocupado pelo sexo masculino. Dessa forma, ainda que não houvesse especificidade na produção das obras, havia na recepção, que, como se pode imaginar, não era das melhores.

É por essas e outras que fica evidente como a mulher é continuamente aperreada e como, por essa inferiorização, é recorrente que ela perca seu poder como agente, o que culmina em sua minimização a superficialidades físicas.

É por essas e outras que precisamos continuar a assumir posturas informais para que possamos sair da normatividade de uma dominação que objetifica e deprecia.

Originally published at www.siteladom.com.br on September 28, 2015.

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