O mito da mulher histérica e sua consequência sobre as mulheres

Victória Ferreira
Lado M
5 min readApr 26, 2016

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Na Grécia Antiga, histeria era uma doença feminina. O próprio nome já denuncia isso, já que em grego, histerus, significa útero. Naquela época, os sintomas da histerias eram creditados à locomoção interna que o útero realizava em busca de umidade. A doença, inclusive, até mesmo era utilizada para diagnosticar transtornos nervosos nas mulheres que não engravidavam. Séculos mais tarde, na Idade Média, a palavra era associada à bruxaria, levando muitas mulheres à fogueira.

Por um longo período, histeria ficou associada puramente ao feminino, sendo uma condição para caracterizar mulheres com surtos de pânico, ansiedade, irritabilidade, insônia, dores de cabeça, perda de apetite, e outros sintomas. Mulheres — no período pós Revolução Industrial e no auge da burguesia, por volta do seculo XIX — que se sentiam aprisionadas pelos papéis que lhes eram impostos pela sociedade patriarcal e contestavam tal realidade eram taxadas de histéricas e, consequentemente, mandadas a hospitais e consultórios para receber tratamento. A histeria coletiva das mulheres nessa época estava relacionada, também, a incessante repressão sexual pela qual passavam.

Tal fato começou a ser estudado por Jean Martin Charcot (1825–1893) e seu mais brilhante aluno Sigmunt Freud. O encontro de Freud com a doença iniciava o que mais tarde viria a ser conhecido como Psicanálise. Em seus estudos, percebeu que os sintomas histéricos estavam relacionados com a repressão de impulsos libidinosos. A lembrança de tal trauma e sua catarse seriam a cura.

Não só. A histeria, era, e ainda é, uma manifestação física de situações psíquicas. Nesse contexto, o tratamento mais comum da doença nos consultórios era a massagem vaginal, como forma de aliviar os sintomas da enfermidade. Essa prática levaria mais tarde à invenção do vibrador.

Atualmente, sabe-se que a histeria é uma forma de neurose, ou seja, um distúrbio mental que se manifesta fisicamente e que afeta tanto homens quanto mulheres. O transtorno leva a reações exageradas e teatrais daquele com a condição, o que passa a impressão de fingimento. Mesmo com esse conhecimento, como acontecia antigamente, mulheres ainda são tidas como histéricas, como forma de desacreditar suas emoções legítimas, com a relação direta ao esteriótipo de “mulher louca”. Qualquer emoção expressada por elas é relevada e ignorada, pois é tratada como drama e irracionalidade.

“Mulher histérica, está exagerando!”, dizem muitos para desacreditar emoções expressas ou relatos de uma mulher. Muitos transtornos reais, se manifestados em mulheres, são desqualificados pela crença de que são seres naturalmente desequilibrados, volúveis e irracionais. Isso se agrava ainda mais, pelas viradas de humor ocasionadas pelos ciclos hormonais do corpo feminino. Uma mulher irritada quase sempre é vista como se estivesse com TPM e é, por conseguinte, ignorada.

Em entrevista ao Lado M, Janaina Leite, atriz e uma das criadoras da peça Hysteria — que conta a história de cinco internas no hospício Carioca Pedro II, diagnosticadas com histeria no contexto da virada do século XIX no Brasil -, falou sobre a relação do transtorno psicológico com o feminino.

A peça conta a história de cinco mulheres em um tom biográfico. Como a internação delas por histeria na história(trama?), e na vida delas, se associa ao padrão esperado das mulheres na época em que a história se passa?

As cinco mulheres que abordamos, nós reconstituímos a vida delas via documentos e criação. Então há tanto um teor documentário como ficcional, não tínhamos pretensão de dar conta de um biografia de verdade. No caso, todas elas foram internadas por histeria, e nós partimos do pressuposto de que na verdade não se tratava da doença, mas sim de um descompasso social. Ou seja, que todas elas, de alguma forma, não se encaixavam no que era esperado socialmente para as mulheres. Então, acreditamos que ou elas foram colocadas diretamente naquele lugar ou desenvolveram um transtorno a partir dessa repressão social.

Por que, na sua opinião, a palavra histeria continua sendo usada até hoje para se referenciar a elas? Os padrões daquela época ainda rondam o uso desse adjetivo?

A doença está muito relacionada ao imaginário sobre o corpo feminino, um corpo misterioso. Acreditava-se que as crises histéricas aconteciam quando o útero da mulher estava se mexendo dentro dela. Hoje em dia nós temos essa herança da histeria ser associada majoritariamente ao feminino por causa dessa origem da crença da mulher como um ser incontrolável e sujeita aos humores do corpo, mesmo que seja uma doença que se manifesta também nos homens. É uma forma de tirar a mulher do campo do pensamento e do campo da razão e colocar as ideias delas no campo do disparate, da paixão, do sem sentido de uma opinião que não pode ser levada em consideração porque pode mudar a qualquer momento, já que as mulheres estariam sujeitas a esses humores. Usar esse termo para se referir a uma mulher hoje é para desqualificá-la.

Na história da peça, por que essas mulheres foram diagnosticadas com histeria? E como isso se relacionava ao que acontecia em suas vidas? Como o diagnóstico foi utilizado para cercear suas liberdades?

Usar a histeria para colocá-las em um quadro patológico era uma forma de cercear as liberdades, aquilo que ultrapassava os limites. Uma mulher que queria escrever, ter ideias revolucionárias, que queria ter relações com outras mulheres ou com vários homens, entre outras. Esse diagnóstico era uma forma de frear essas mulheres e confiná-las. Muitas mulheres foram submetidas a tratamento de choque e à reclusão. Existe a história, por exemplo, da Dona Iaiá daquele casarão ao lado do Teatro TBC. Ela foi uma mulher que ficou 40 anos trancada dentro de casa, em um espaço pequeno construído para ela. Era uma mulher que ficou louca depois dessa exclusão, porque obviamente sendo trancafiada e isolada por anos deixa a qualquer um louco, mas que na origem era uma mulher destoante, que não pensava como as demais e que queria outras coisas. Muitas mulheres tiveram esse mesmo destino.

O adjetivo “histérica” ainda é muito presente quando é colocado para qualificar mulheres. Mas e você, leitora? Já foi chamada de histérica alguma vez por sair dos padrões ou falar mais do que os outros queriam ouvir?

Originally published at www.siteladom.com.br on April 26, 2016.

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