O vídeo acima toca em um ponto que poucas pessoas ousam falar: o lado feio do pornô. E não é feio porque é “imoral” ou porque é sexualmente transgressor: é feio porque machuca, porque mata.
Prestem atenção: a intenção não é demonizar os filmes eróticos e culpar a todos os que os assistem como pervertidos contribuindo para o mal do mundo. Não, não é isso. Mas não podemos ver o pornô acreditando que ele é como um conto de fadas para adultos (e, geralmente, homens), onde todos são sarados, saudáveis, e gozam adoidado na maior facilidade.
A Shelley, presidente da Pink Cross, é a fada madrinha que destrói todo o lindo reino encantado das ilusões pornográficas. Ela não aceita que o pornô seja saudável em nenhum parâmetro e acredita que a industria acabará em alguns anos. Enquanto ela espera a morte do pornô, ela luta para que, nesse meio tempo, atrizes e atores tenham segurança. Ela luta para que eles tenham a segurança que ela não teve.
No cartaz, “Pornografia é combustível para estupro”
Shelley começou a se prostituir muito nova, depois de ser expulsa de casa. Ela viu no pornô uma oportunidade de fazer dinheiro e dar uma vida melhor para seus filhos.
“Além do mais, eles [os pornógrafos*] agem como: ‘Fique tranquila, nós somos as pessoas mais limpas do mundo. É seguro’. Eu fui inocente e acreditei”.
Por outro lado, o pornô pode sim ser uma maneira de ter uma vida melhor. A Patricia Kimberly era professora de inglês e estava cursando a faculdade. Quando foi trabalhar com a indústria do sexo, achou que seria temporário, mas ela gostou da coisa. Ela conta que gostava de se arrumar, de ser olhada e que sempre teve o sonho de ser capa de revista. Hoje ela diz que não mudaria de ramo e que, com a idade, pretende começar a produzir e dirigir filmes.
A profissão Atriz Pornô (ou também, muitas vezes, prostituta) não é um problema, um mal, uma falta de opção. É um mercado que deve ser visto como uma opção digna tanto quanto qualquer outra. O mal da indústria é que ela está marginalizada, e, com isso, não há proteção para atores e atrizes, não há regulamentação própria. O errado não é o que é feito e, sim, como é feito.
Indústria Pornográfica nos EUA
Nos Estados Unidos, a prostituição é ilegal. Gravar filmes pornôs é considerado prostituição em todos os estados americanos, com exceção de dois: Califórnia e New Hampshire. Em Los Angeles, na Califórnia, são filmados 90% de todo o pornô produzido no mundo, e lá não se usa camisinha.
O método responsável por fazer o controle de doenças são os exames. Shelley conta que, nos anos 90, quando ela atuava, cada pessoa do elenco era testada uma vez por mês e apenas para HIV.
“E quanto à herpes e todas as outras doenças? Como eu poderia me sentir segura se eu sei que 99% das atrizes e atores estão trabalhando com prostituição ao mesmo tempo? E que, pela quantidade certa de dinheiro, elas fazem sexo sem camisinha? Se o exame foi feito em um dia e no outro a atriz fez sexo com um cliente, como ele pode ser válido por um mês inteiro?”
Hoje as coisas mudaram: o exame testa o vírus HIV, clamídia e sífilis. Ele é feito uma vez por mês e todas as vezes antes de o ator gravar. No entanto, como diz Shelley, “Ele só constata ou não a presença. Fazer o exame não previne”.
Shelley foi afetada pela falta de proteção nas cenas. Ela contraiu HPV e, em consequência do vírus, desenvolveu câncer de útero precoce e teve metade do órgão retirado. Além disso, Shelley também contraiu herpes. “Eu tinha herpes no anus, na vagina e por toda a minha garganta. É uma doença sem cura. Eu me sentia um monstro”
Depois de contrair herpes, Shelley encontrou o amor da sua vida — o filho de um pastor — e saiu da indústria do sexo.
Aqui no Brasil
Como foi afirmado tanto pela Patricia quanto pelo Valter, no Brasil se grava com camisinha na grande maioria das vezes. Patrícia diz que não tem medo de filmar sem, mas que se sente mais segura quando a cena é com preservativo.
Sobre a troca da camisinha pelos exames, Valter afirma: “O grande problema são os produtores e diretores, que, muitas vezes, participam dos filmes, mas eles não usam camisinha e nem sequer fazem exames”.
Valter chegou ao cinema pornô por um caminho diferente: ainda quando estudava filosofia, começou a escrever para revistas que faziam avaliações de filmes eróticos e assim foi convidado a codirigir seu primeiro filme. Como a filosofia interage com a produção de pornografia? Valter responde: “Praticamente em nada. Muitas vezes elas, se opõem.” É por essa trajetória, um tanto quanto exótica, que Valter quebra os estereótipos de “Diretor de Filme Pornô” e mostra uma realidade interessante.
“O pornô é um microcosmos da realidade. Toda a competição que se vê no pornô é reflexo da competitividade do mercado. É como as marcas de cervejas que brigam pra ver quem faz o comercial mais babaca. Se um produtor faz um filme assim ou assado, o outro vai querer fazer duas vezes pior. Nos EUA, a produtora do Joe Stagliano faz muito isso. Eles querem fazer tudo que tem de mais bizarro violento e perigoso”
O pornô tem limite?
É muito difícil falar sobre limites no pornô. Toda e qualquer tentativa de abordagem vai bater na trave da censura. É preciso tomar cuidado para não ser moralista ao dizer, por exemplo, “É errado que tenha violência no sexo”. Os fetiches são fetiches porque estão no limite do permitido e do interdito. Toda a sexualidade deve ser respeitada. O sexo agressivo pode ser sinônimo de satisfação para um casal em que as duas partes saem igualmente felizes.
Mas a questão é a padronização, é a falta de opção. É como a especialista em direitos da mulher, a Tamara Gonçalves, disse: “Será que não existe outra forma de contar as histórias que não seja somente tratando a mulher como objeto?”. Porque não é errado que se sinta tesão numa fantasia sexual em que a mulher é objeto (se a mulher estiver de acordo com isso, é claro), mas não pode ser certo que só seja possível sentir prazer dessa forma, que sempre tenha que ser assim e que não haja outra possibilidade.
Essa é uma questão muito pungente há tempos. Parece que todos os filmes pornôs são sempre voltados para homens héteros, e nem sequer para todos os homens héteros, mas para um determinado grupo com um determinado gosto. E, assim, todas as outras pessoas têm de se condicionar à oferta do mercado. “A tolerância das pessoas vai se esgarçando” diz Tamara. Se antes era forte ver uma cena com uma violência X, depois isso não desperta mais nada: é preciso 2X, 3X. “Ao mesmo tempo que o pornô reproduz, em certa instância, a violência do mundo real, ele ajuda a perpetuar essa cultura de agressão”.
Como equilibrar a liberdade de desejo sexual sem usar do moralismo e garantir que o pornô não vire um espaço de agressão? Patrícia responde: “Qual é o limite? tem limite? O limite é enquanto eu esteja gostando, eu esteja tendo tesão com aquilo”
“Eu gosto de fazer filme pornô”
“Ah eu adoro! Uhum, eu amooo! É tão sexy”, ironiza Shelley com caras e bocas. “Elas são atrizes. Elas estão atuando! Uma atriz pornô é melhor que uma atriz de hollywood. A Julia Roberts pode ir lá, fazer um filme e depois da gravação ela é uma pessoa normal, mas uma atriz pornô não, ela nunca sai do personagem, ela sempre tem que ser sexy.”
Shelley não acredita que seja possível sentir prazer fazendo filmes. Ela sugere que as pessoas constatem que não há felicidade nisso olhando a vida por trás das câmeras, os problemas dessas mulheres e homens com bebidas, remédios e drogas. Shelley, inclusive, faz um grande levantamento de estrelas pornôs que morreram por DSTs, suicídio, drogas ou bebidas. Para ela, essas mortes são consequência dos danos que o pornô causa.
Já Patrícia diz que sim que gosta, que tem tesão em fazer filmes. Disse até que, depois que começou a gravar, descobriu que era ainda melhor do que aquilo que via. “Eu tive a oportunidade de fazer tantas coisas que eu nunca imaginei”. Patrícia diz que, inclusive, gosta das câmeras porque ela gosta de se mostrar.
Para onde está indo o mercado?
“A indústria no Brasil não existe, nunca existiu”, diz Valter. Segundo ele, a produção no Brasil é pequena é bagunçada. Ele relata parte do processo de produção e venda: “Antes eu recebia X pra dirigir. Agora eu recebo X pra alugar o cenário, contratar os atores, maquiador, fazer todo o filme e ainda tirar meu lucro”
A reclamação de Valter não é exatamente sobre seu salário. Ele diz isso para mostrar que, antes, era dada muito mais atenção e investimento para um filme que teria um custo para o consumidor de 40 reais, por exemplo. E hoje os produtores querem gastar quase nada para fazer um filme de baixa qualidade e continuar cobrando do consumidor os 40 reais. E além dessa questão e de toda a disponibilidade de filmes gratuitos na internet, ainda tem a grande falha da distribuição no Brasil. “Não tem distribuição no Brasil”, diz Valter.
As atrizes também são vítimas dos salários baixos, por isso todas (e, se não todas, a maioria esmagadora) também trabalham com prostituição. Os filmes são uma forma de divulgação do nome e da personagem, e não exatamente uma forma de ganhar a vida. Pelo menos não aqui no Brasil.
“O cara vê o filme e aí entra em contato querendo um programa com a Patrícia Kimberly do filme” explica Patricia que gerencia o próprio site por onde seus clientes a encontram e a contratam.
“É impossível voltar para o pornô light”. Na opinião de Shelley, a pornografia exige sempre mais e mais, assim não há um caminho de volta para um pornô onde o sexo é fácil e simples. Além do mais, não é isso que ela quer. Shelley quer o fim da indústria. Enquanto ela não alcança esse objetivo, ela busca proteger os atores e atrizes, mas suas lutas no senado americano buscam cercar a indústria de filmes para que não sobrem mais opções de sobrevivência.
Em 6 de novembro de 2012, foi aprovada a Medida B em Los Angeles. A lei federal já previa que todos os trabalhadores que em, seus trabalhos, são expostos a fluídos potencialmente contaminantes, devem usar proteção. A Medida B reforça essa lei deixando claro que pornô é trabalho, e que tem que ser usado camisinha como medida básica de segurança dos trabalhadores. Adivinha o que os maiores produtores de filmes falaram? “Isso é contra a liberdade de expressão”. Mas Shelley acredita que está dando certo. “A fiscalização está chegando em alguns estúdios e aplicando multas de milhares de dólares por violação.”
Para onde a indústria vai, ninguém sabe. É verdade que estão são criados pornôs alternativos, alguns sob diretrizes que agradem mais às mulheres, outros pornôs mais parecidos com a vida real ou com histórias mais interessantes. Mas também é verdade que todas essas novas linhas ainda não têm força comparável ao pornô mainstream hardcore que domina a internet
Sobre os entrevistados da matéria
Shelley Lubben
É a fundadora e presidente da Fundação Pink Cross. A associação vai ao congresso brigar para que a indústria pornográfica ofereça mais segurança e proteção aos seus trabalhadores e também ajuda mulheres e homens que querem sair da profissão e àquelas garotas que buscam alguma orientação antes de ingressarem nesse mercado.
Ela foi expulsa de casa quando era nova e acabou nas ruas, nas mãos dos cafetões. Trabalhava como garota de programa, mas não conseguia mais seguir nessa profissão e então foi tentar ganhar a vida como stripper em night clubs. Certa noite chegou uma estrela porno no stripclube e foi conversar com Shelley.
Na época em que Shelley trabalhava com filmes eróticos, nos anos 90, a indústria pornô só realizava exame de HIV uma vez por mês. Além das falhas de controle em só realizar o exame de HIV, as outras doenças foram negligênciadas. Shelley contraiu HPV, o vírus lhe causou um cancêr precoce de colo de útero. A atriz teve 50% do útero removido por causa da doença. Ela parou de atuar depois de contrair herpes e de conhecer o homem que viria a ser seu marido.
“Eu tinha aglomerados de herpes na garganta, na vagina e no anus. Herpes é uma doença sem cura. Eu pensei: quem vai me querer agora, eu sou mãe solteira de 2 filhos e tenho herpes. Foi ai que eu conheci um homem incrível. Ele disse que via em mim uma mulher boa que os outros não viam. E que ele queria casar comigo e fazer de mim uma mulher honesta, que não ligava para o resto”.
Shelley casou, parou de trabalhar com sexo, voltou a estudar, se engajou na igreja e nunca mais quis falar sobre seu passado e filmes pornôs. Até que um dia ela sentiu um chamado de Deus para que ela ajudasse as pessoas que, assim como ela, sofrem com as condições de trabalho na indústria pornô.
“Eu lembro de quando eu estava bêbada eu pedia ‘Deus, por favor, me tira dessa. Se você me tirar dessa, eu prometo que faço o que você quiser’. Então eu cumpri minha promessa e fundei a Pink Cross”.
Valter de Souza (Vander)
Valter é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e também trabalha com diretor de filmes pornôs. Convenhamos que Valter não é uma figura comum: é bastante difícil imaginar alguém com duas vertentes de trabalho tão diferentes.
Quando era jovem, Valter escrevia crítica de filmes eróticos para revistas. Assim, aos poucos ele foi conhecendo as pessoas do ramo cinematográfico e então foi convidado a dirigir filmes.
“Naquela época os filmes eram diferentes, eram artísticos. Depois, com o advento do VHS e, mais pra frente da câmera digital, tudo ficou muito mais fácil. Mas com a quantidade, se perdeu a qualidade. Qualquer um podia pegar uma câmera e fazer seu próprio filme”.
Patricia Kimberly
Patricia é uma atriz pornô famosa e reconhecida no Brasil.
Patrícia era universitária e dava aulas de inglês quando começou a trabalhar em uma boate como acompanhante. Assim como Shelley, foi na boate que a convidaram para trabalhar com filmes pornôs.
“Até mesmo quando eu comecei a trabalhar como garota de programa, eu percebi que eu gostava, que eu me sentia bem. Eu gostava das roupas, eu tava ganhando bem, ai eu parei de dar aulas de inglês. Meu sonho, sempre foi ser capa de revista, então eu gostei quando me chamaram pra fazer filmes.
Patrícia hoje cuida do seu próprio site e páginas, o que lhe traz muitos trabalhos e clientes, sem que ela precise depender de “administradores”. Ela sabe que, depois de certa idade, o trabalho com o corpo se torna difícil, por isso pretende começar a trabalhar nos bastidores do ramo.
“Não pretendo parar de trabalhar com isso”.
Originally published at www.siteladom.com.br on May 12, 2014.