O parto no Brasil: “temos uma cultura de cesárea no país”
Era o primeiro dia do mês de abril quando Adelir Góes, gaúcha de 29 anos, estava grávida e, já em trabalho de parto, teve de sair da sua casa, onde pretendia ter o bebê, para um hospital próximo para a realização de uma cesárea. A questão, no entanto, é que isso foi feito contra sua vontade. Mais do que isso: seu marido fora ameaçado de prisão caso não seguisse as ordens judiciais. Apavorada, entrou na ambulância e foi. “Em quê se baseiam essas ordens?”: essa é a pergunta do momento.
Para a psicóloga e professora do Curso de Obstetrícia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP Cláudia Medeiros de Castro, o Brasil vive um fenômeno chamado “universalização do parto hospitalar”, constatado na última Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS-2006). Isso significa dizer que, diferentemente do que acontece em outros países, como o Reino Unido, por exemplo, onde o próprio Sistema Público de Saúde (National Health Service, o NHS) oferece assistência profissional obstétrica para o parto domiciliar, mais de 90% partos realizados por aqui acontecem no hospital, mesmo nos lugares onde a rede hospitalar é pequena. No estado de São Paulo, mais especificamente, esses números passam de 99%.
No hospital, a cesariana, que é apenas uma das maneiras de se dar à luz, é muito frequente, mas é uma cirurgia. Enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a taxa de cesárea seja em torno de 15%, no estado de São Paulo, no ano de 2011, foi 60%, o que corresponde a 366.950 cesáreas realizadas, conforme dados disponíveis no Datasus. Mas o real chega a ser de aproximadamente 90% em alguns hospitais particulares paulistanos. “É um absurdo se formos comparar com o que recomenda a OMS. Temos uma cultura de cesárea no país”, alega a professora.
A cesárea é recomendada, sim, em alguns casos, mas não com a frequência com que acontece aqui no Brasil. Isso se dá por uma série de fatores, como diz Cláudia. Um muito importante é a formação profissional de quem atende a gestante. “Se o médico obstetra aprende durante sua faculdade e residência a realizar especialmente a cesárea, é isso que ele irá fazer. Não conseguirá conduzir o parto normal, esperar o tempo necessário que ele requer, por exemplo, então ele intervém”.
Outra questão é a forma como o corpo da mulher é visto, como insuficiente e inadequado para desempenhar seu papel durante o trabalho de parto. A mulher é, historicamente, um objeto de intervenções da medicina e, no caso do parto, isso se expressa pela realização da cesariana. Há também interesses econômicos: ficar acompanhando uma mulher durante horas no trabalho de parto, enquanto poderiam ser realizados vários outros, não seria algo interessante. O trabalho de parto leva tempo, pois é diferente para cada mulher. E sabemos: tempo é dinheiro. E a cesariana parece ser um procedimento melhor remunerado, mais recheado do que o normal.
Além disso, há, é claro, a desinformação e desatualização de pessoas e profissionais com relação aos estudos acerca da temática. “A mídia relata os partos na televisão e nas novelas como um evento de muito sofrimento, de muita dor, de desespero da mulher”, diz Cláudia. “Até décadas atrás, o parto era um evento que acontecia no corpo, mas apropriado pela mulher e família, não somente algo fisiológico. Tinha componentes emocionais, simbólicos, culturais… Sempre foi vivenciado, na comunidade, por mulheres que eram cuidadas por mulheres, e os familiares estavam na casa sabendo de tudo o que estava acontecendo. Hoje, o parto foi colocado no hospital, como um evento de risco”. A professora e psicóloga ainda acredita que a mulher tenha sido desapropriada do processo de parto, que tenha perdido o conhecimento sobre sua capacidade, sobre o que seu corpo é capaz de realizar. “Mais do que o corpo, ela é capaz de viver isso.”
O parto normal realizado nos hospitais também não fica totalmente isento de intromissões. Apesar de o bebê sair pelo canal vaginal, nesse tipo de parto também acontecem inúmeras intervenções, como o uso de medicamentos para acelerar o trabalho de parto e suprimir a dor que a mulher sente, explica Cláudia. Um procedimento muito utilizado no Brasil, ainda, é a episiotomia, que consiste em um corte no períneo (região entre a vagina e o ânus) para “facilitar a passagem” do neném. A justificativa é que, se não for cortado, o períneo pode se cortar sozinho e a mulher ter uma laceração, o que é ruim. Mas, ainda que a OMS não recomende o uso rotineiro da episiotomia, tal procedimento foi realizado em 71,6% dos partos normais, conforme encontrado na PNDS de 2006.
Na verdade, “o que acaba sendo desejado é que o parto evolua e aconteça o mais rápido possível para a criança nascer logo e a equipe médica dar sequência ao atendimento de outras mães ou para que possa realizar outras atividades”. Para Cláudia, intervenções como essas já desconfiguram o parto normal que acontece em hospitais como sendo natural. “Não são respeitados os aspectos fisiológicos do parto.”
O parto que de fato é natural considera e, inclusive, estimula a fisiologia materna. É um parto que acontece em seu tempo. “A mulher é a protagonista dele”. Evita drogas que o acelerem, evita a episiotomia, evita medicamentos para o alívio da dor. Evita o entorpecimento. É feito de maneira que, mesmo aspectos que possam ser desconfortáveis no momento do nascimento, sejam atenuados com técnicas igualmente naturais, como relaxamento em banheira, apreciação de uma música, luminosidade agradável, caminhada e massagem. E, o que é muito importante para a mulher: ter a companhia de alguém de sua escolha.
O modo natural de dar à luz também pode existir no ambiente hospitalar, em centros de parto normal em que se esquiva a realização de procedimentos mais agressivos.
Foi por esse procedimento que passou Júlia Linhares, mãe do Biel que escreve muito sobre maternidade em seu blog MaisJu.
A história da Ju
Ela, que nasceu de parto normal, diz sempre ter escutado a mãe falando sobre os benefícios dessa escolha, e, por isso, desde pequena considerava esta forma para parir.
“Quando engravidei, já tinha um ginecologista que me acompanhava, mas, ao conversar sobre detalhes do parto, não senti firmeza em seu discurso. Diante disso, comecei a procurar outro médico, que atendesse as minhas expectativas e estivesse alinhado com o que eu pensava/acreditava”, diz.
Até que chegou a uma obstetra reconhecida por realizar partos humanizados no Rio de Janeiro (onde mora), informou-se sobre o assunto e se interessou.
Ela comenta que, até então, seu marido era dos que acreditavam na cesárea como um procedimento mais seguro. “No entanto, como o corpo é meu, ele sempre dizia que me apoiaria em qualquer decisão que eu tomasse”. Conforme a gestação foi avançando, o casal foi se informando, lendo a respeito sobre o assunto, “e antes mesmo da metade da gestação, já tinha ganho um defensor do parto normal”.
Durante a gravidez, Júlia diz ter feito yoga para gestantes e, a partir da trigésima semana, começado a ter encontros semanais com a enfermeira obstetra da equipe de sua médica. “As consultas e esses encontros foram fundamentais para o meu empoderamento de que eu seria capaz de parir meu filho”, conta Júlia.
Sua bolsa rompeu em uma manhã de domingo, e então passou o dia com o marido. “Só nós dois, foi um momento muito especial”. O casal combinou de não contar para ninguém da família para não criar expectativas. Júlia passou o dia tranquila e com contrações irregulares. Diz ter entrado em trabalho de parto ativo somente domingo por volta das 21h. Neste momento, a enfermeira obstetra foi para sua casa acompanhar a evolução do trabalho de parto, e às 2h os três se dirigiram para o hospital encontrar com a obstetra.
“Meu filho Gabriel nasceu em uma segunda-feira, 18 de março de 2013, às 6h06 da manhã, num parto natural (livre de qualquer tipo de intervenção), na qual o respeito e o carinho estiveram presente em todos os momentos. Biel saiu de mim e veio direto para o meu colo, onde mamou por uma hora até sair para ser pesado e medido.”
O parto natural no passado
Foi na década de 1970 que começaram a surgir grupos questionando o modelo obstétrico vigente no país. Ativistas, profissionais de saúde inconformados com a assistência oferecida e estudiosos do tema começaram a discutir e pensar alternativas a ele. Nesse momento, passou a existir uma revisão de estudos sobre o assunto, buscando-se aqueles que falavam das boas práticas clínicas e das evidências científicas para determinados procedimentos. Foi então que a ideia de parto natural, que já existia em tempos anteriores, foi retomada.
Raquel Pavão Kobërle, advogada e doula, quis ter sua filha deste modo.
A história de Raquel
“Antes de ter filho, costumávamos brincar que teríamos vários. Meu sogro, médico ortopedista, dizia que eu não conseguiria ter quatro cesáreas, que se quisesse ter esse tanto de filho, teria que fazer parto normal”, conta Raquel. E foi assim que teve Gabriel, seu primeiro filho. Sem saber exatamente o porquê, optou pelo parto normal. “Nosso médico que acompanhou o parto do Gabriel falava ‘parto normal é coisa do passado’, e a gente foi indo, sem muita informação, sem saber o que estava acontecendo”.
Mas a bolsa de Raquel estourou com 39 semanas, e quando chegaram ao hospital, o bebê já estava quase nascendo. “Eu tomei uma anestesia muito forte, por isso quase não lembrava direito o que estava acontecendo. Para mim foi muito ruim.”
Sua grande crítica foi que poderia ter tido um parto um tanto quanto legal, mas se decepcionou já com o plantonista, que diz ter sido supergrosso. “Ele falava: ‘Parto normal, tem certeza? Dói muito… se você já reclama de dor agora, antes de o bebê nascer, imagina na hora do normal?’. E aí eles me deram o Gabriel depois de um tempão meio que ‘toma, esse bebe é seu’… eu não o conhecia, pensei ‘tá bom, acredito que seja meu’”.
Depois disso, Raquel foi atrás de informação e descobriu o parto natural. E foi deste modo que, há cinco anos, nasceu Isadora, com a mãe concebendo-a de cócoras. “Eu me lembro dela, do cheiro dela, até hoje. Ela veio para o meu colo assim que nasceu, foi superrápido, não foi feita episiotomia, não tomei anestesia. Foi muito legal.”
Neste segundo momento, teve o auxílio de uma doula, fez yoga e natação. “Dá para notar a diferença da minha expressão nas fotos dos dois partos”, brinca. Mas acredita que os próprios funcionários não estão muito preparados. Mesmo nesta segunda vez, os anestesistas tentaram oferecer-lhe o medicamento mesmo contra sua vontade, o que foi impedido somente quando seu médico chegou e, ciente do desejo da parturiente, resolveu a situação.
O apoio psicológico da família e da doula, segundo ela, são essenciais para se lidar com os sentimentos aflorados “que nem sabemos que temos”. Raquel hoje compõe o Fórum Pela Humanização do Parto e Nascimento.
A doula
É comum que em partos naturais, e mesmo em normais, o nascimento do bebê seja acompanhado por uma doula. Segundo Dorothe Kolkena, acumputurista, educadora perinatal, e doula há 14 anos, “doulas são profissionais que, dentro do cenário do trabalho de parto, são responsáveis pelo bem estar físico e emocional da parturiente”. Deve fazer com que a mãe se sinta bem, segura e apta pra parir. “Quanto mais a mulher se sente bem, segura e em casa, melhor esse trabalho de parto vai fluir”. Vale lembrar que a doula não tem responsabilidade técnica nenhuma, isso cabe à parteira ou à obstetra.
Dorothe tem seu trabalho focado exatamente no acompanhamento da mulher no contexto fisiológico. Como doula, também acompanha a cesárea não-eletiva, oriunda de um trabalho de parto que resultou nesse desfecho.
A grande questão do parto natural, para ela, é que se trata de respeito à fisiologia do momento, ao corpo e ao protagonismo da mãe. “O parto não é um processo patológico, é fisiológico. Não precisa de intervenção ativa a não ser que algo saia da normalidade. A mulher é a protagonista desse processo. Não é o médico ou a parteira que fazem o parto. Quem está parindo é a mulher”, diz.
Assim como já explicado que acontece em partos naturais, Dorothe se vale de métodos não-farmacológicos para alívio de dor: massagem, técnicas de respiração, meditação, visualização, banheira, chuveiro, bola de pilates etc. Segundo ela, parto vertical, como o de cócoras, além de outros benefícios, é mais fácil porque conta com a ajuda da gravidade — o bebê consegue percorrer seu caminho com mais facilidade.
Ela acredita que ainda exista quem opte por cesárea “porque as pessoas se deixam enganar; porque o médico ainda é uma figura que se comporta e é tido como Deus”. Assim, o que ele fala é aceito sem questionamento. “E porque a mulher brasileira não está acreditando na própria capacidade de parir mesmo.”
Dorothe integra o Grupo Samaúma, que visa informar e orientar mulheres e casais para que possam fazer escolhas conscientes.
O que aconteceu com Adelir
Do parto que se fez cirurgia, Adelir teve sua filha, Yuja Kali
O caso da Adelir, em especial, foi sobre a possibilidade de haver rompimento uterino. Ela foi informada e fez uma escolha. “Existem mulheres com cesáreas anteriores que realizaram o parto natural posteriormente”, explica a psicóloga e professora Cláudia. De qualquer modo, é recomendado que o parto natural de fato conte com amparo profissional caso seja necessária alguma intervenção. “Se houver alguma contraindicação clínica, que seja incompatível com a realização do parto natural, e existem situações em que a cesárea é de fato mais segura, a mulher deve ser informada para que possa decidir. Mas, quando falamos das mulheres em geral, elas estão preparadas para ter seus filhos naturalmente.” Raros mesmo são os casos em que cesárea necessita ser primeira opção — lembremos que a OMS espera que apenas 15% dos partos sejam cesáreas.
“Quando há contraindicação de parto normal, por que não buscar uma segunda opinião?”, sugere Cláudia. “A minha recomendação para as mulheres é que busquem informação de um profissional atualizado para tomarem decisões.”
Além dos médicos obstetras, temos obstetrizes e enfermeiras obstetras, que são profissionais capacitados para oferecer atenção na gestação, parto e pós-parto.
“Tivemos um desrespeito à autonomia da mulher neste caso”, afirma Cláudia. E o que aconteceu com Adelir levanta algumas questões muito importantes e sem dúvidas polêmicas: de quem é o corpo da mulher? Depois que engravida, não pode mais decidir sobre seu corpo? Quem passa a ter direito é o feto? Ele tem mais direito que ela?
Originally published at www.siteladom.com.br on April 17, 2014.