O que o feminismo tem a ver com o alistamento militar obrigatório?

Ana Carolina Müller
Lado M
Published in
6 min readJun 5, 2017

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Vem cá, moço, deixa eu te contar uma coisa: o feminismo não está tentando destruir você. Nós lutamos para, pelo menos, não sermos tratadas como inferiores a você. Isso é bem justo. Há uma persistente dicotomia dos gêneros que conhecemos: ou você é frágil, sensível e emocional; ou forte, bruto e possui dificuldade para lidar com as emoções. Nessa lógica, se algo é supostamente inferior, deve haver outro lado que está por cima, que possui alguma forma de poder — eis aqui o machismo. Com ele, todos nós recebemos uma lista de padrões a seguir e cada um vivencia sua parcela de sofrimento com isso.

Apesar de esse sistema afetar a todos, quem está no movimento feminista há algum tempo sabe que as brigas e os ataques masculinos são constantes. E quase sempre aparece o famoso argumento: “Ah, vocês querem igualdade? Mas e o alistamento militar obrigatório?”. Talvez isso seja uma surpresa, mas nós não apoiamos o alistamento militar como uma obrigatoriedade para nenhum dos gêneros. Mas, se a existência dele incomoda os homens, eu preciso dizer, com todo respeito e com toda minha compaixão, que isso não é problema meu — e você vai entender o porquê.

O patriarcado é cruel

O patriarcado inferioriza as mulheres e transforma a masculinidade numa caixinha terrível de se habitar — mas, por outro lado, dá aos homens muitas vantagens, e é a existência dessas vantagens que torna difícil para a maioria masculina enxergar um lado doloroso que não está sempre tão visível e que engloba, não raramente, a pressão para que o homem seja agressivo e esteja sempre pronto para se meter em uma briga.

O feminismo luta sim contra essa construção machista de masculinidade, porque a pressão para se tornar forte, agressivo e rodeado de parceiras sexuais gera angústias e um ciclo de violência que termina por afetar o lado tido como mais fraco — nós, mulheres. Quando as vítimas são homens, geralmente estes estão envolvidos em brigas ou são agredidos no espaço público por fugirem da imagem ideal masculina — e, mais uma vez, o feminino é visto como inferior.

Partindo dessa construção nociva de masculinidade, o patriarcado acredita no seguinte: ora, se os homens são detentores da força e do pensamento racional, então eles devem se responsabilizar por proteger o restante da sociedade. E aí chegamos à questão do alistamento militar.

“Mas e o serviço militar obrigatório?”

Na prática, o Exército é mais uma das formas de legitimar qual padrão deve ser seguido pelos homens. E essa lógica não é recente: nossa Constituição de 1824 foi o primeiro documento a declarar que “todos os brasileiros são obrigados a pegar em armas para sustentar a independência, a integridade do Império e defendê-lo de seus inimigos”. É importante lembrar que este Império não considerava as mulheres como cidadãs dignas de direitos e deveres. Logo, foi um projeto criado por homens e para homens.

Já o conceito de obrigatoriedade existia desde a Revolução Francesa, devido ao número insuficiente de soldados para compor o exército necessário na época. Aqui no Brasil, nós imitamos a ideia e passamos pelas duas Grandes Guerras com um Exército formado por meio de sorteios aleatórios, mas já bem organizado e caminhando para o que conhecemos dele hoje. Não é uma surpresa que foi o golpe de 1964 que promulgou a lei do serviço militar, reafirmada pela Constituição de 1988 e vigente até hoje. Assim, o alistamento militar obrigatório nada mais é que uma herança da ditadura — herança essa que, novamente, foi pensada por homens e para homens.

Mas por que essa lei ainda existe?

Antes mesmo da ditadura militar, a participação no Exército era vista como parte de um processo de formação moral masculina, que visava ao afastamento masculino da marginalidade. Essa visão romantizada não costuma se concretizar na prática, já que a instituição militar faz um ótimo trabalho reafirmando o lugar de criminoso do jovem nesta situação, contrariando qualquer lógica educativa eficaz.

Ainda assim, esse argumento ultrapassado e autoritário de que o serviço militar irá educar os jovens e diminuir a criminalidade no Brasil ainda tem força política. Por um lado, é uma alternativa para jovens de baixa renda — um soldado incorporado recebe por volta de 700 reais, além de vale-transporte, alimentação, assistência médica e outras qualificações. Por outro, as atividades criminosas de jovens nesta situação de baixa renda começam antes dos 18 anos e apresentam a eles uma faceta nada acolhedora da instituição militar. Além disso, quando ouvimos histórias de adolescentes que se apresentaram ao Exército após completar 18 anos, não é raro ouvir relatos sobre jovens homossexuais que são ridicularizados e violentados dentro da instituição militar como uma forma de “correção”.

Particularmente, não acredito em um feminismo que esteja sempre “rebatendo os homens”, ainda que seja nessa lógica que as discussões comumente aconteçam: ou as mulheres devem ser as responsáveis por exigir o fim da obrigatoriedade para os homens, ou, se querem tanto um sistema igualitário, que lutem para que tal participação seja a mesma para qualquer gênero. E lá vamos nós tentar dialogar.

Alistamento militar obrigatório para mulheres?

Como em qualquer espaço habitado e controlado por uma maioria masculina, a ideia de uma mulher ser obrigada a servir ao Exército é assustadora e cruel. Baseado em estudos realizados pelo Governo dos Estados Unidos, o documentário A Guerra Invisível mostra a terrível situação de mulheres que foram vítimas de estupro enquanto serviam ao Exército Americano. Estima-se que 1 a cada 3 militares são violentadas durante o serviço militar, sendo o agressor geralmente um colega no qual a vítima confia. Apenas em 2010, 19 mil denúncias foram feitas — somando, para as mulheres, mais casos de violência do que mortes em combate.

As entrevistadas no documentário relatam que as poucas vítimas que denunciam sofrem retaliação e quase sempre o criminoso não é punido de nenhuma maneira. Também não é raro o número de veteranas com sérios traumas físicos, psicológicos e tentativas de suicídio. Tudo que é mostrado no documentário aconteceu com mulheres que não foram obrigadas a nada, mas sim dedicaram suas vidas a carreira militar. Ainda assim, não era um espaço nada convidativo para elas.

Em nossa busca por equidade de direitos, acreditamos que ninguém deveria ser obrigado a participar de espaços que não deseja, assim como todos devem ser livres para estar em qualquer lugar sem medo de sofrer violências. Assim, não faz sentido o feminismo lutar pela obrigatoriedade de um ou outro grupo no Exército — principalmente levando em consideração que a ideia de criar um exército e sua obrigatoriedade não foi das mulheres. Reivindicamos, por outro lado, que a participação feminina na instituição possa ocorrer no caso de qualquer mulher que faça tal escolha livremente, e não obrigatoriamente.

Se os homens não concordam com o alistamento militar obrigatório, por que não se organizam para questioná-lo?

É importante discutir como nada disso é simples, por conta de uma grande concentração de poder que engana os homens e impede que lutem por direitos básicos — inclusive os seus próprios, os quais, no caso, poderiam englobar o direito de não participar de algo que não deseja.

Aliás, esse sistema é tão cruel que consegue motivar as pessoas a agirem de maneira igualmente violenta. Quando um homem se coloca como contrário ao alistamento obrigatório, mas diz que também deveríamos participar do Exército, ele está colocando uma solução claramente punitiva para as mulheres. O ódio direcionado a um grupo que contraria o patriarcado — no caso, as mulheres — é maior que a vontade de lutar em união para ser libertado dessas regras dolorosas.

O patriarcado foi o responsável pela criação da cultura militar, do exército e da obrigatoriedade deste. O patriarcado foi o responsável pela criação de uma masculinidade que coloca o homem na posição de ser obrigatoriamente agressivo e responsável pela defesa de uma nação. Logo, se os homens se sentem vítimas do patriarcado, eles devem se unir contra esse sistema e resolver os seus problemas com esse sistema. O papel das mulheres seria de apoiá-los nessa decisão, mas não cabe a nós comprar uma briga que em nenhum momento foi nossa.

Originally published at www.siteladom.com.br on June 5, 2017.

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