O Som do Rugido da Onça é a voz dos que foram silenciados pela História

Gabrielle Abreu
Lado M
3 min readJul 22, 2021

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No século 19, dois cientistas alemães vieram ao Brasil com a incumbência de regressar à Europa levando plantas, animais e minerais. Não satisfeitos com o que já tinham coletado, decidiram levar também crianças indígenas.

O romance O som do rugido da onça, da escritora e historiadora, Micheliny Verunschk, narra a perspectiva de uma das vítimas. No começo da viagem, eram oito crianças, mas só duas chegaram ao continente europeu, sendo uma delas, a menina Iñe-e.

“Ela pensava, em pensamento desarrumado de criança pequena, pensamento que ia guardando muito bem guardado, que talvez algum dia haveria de ter alguma serventia ter feito pacto com onça.”

Diante do seu estado de prisioneira em uma terra distante demais de tudo que conhecia, Iñe-e acha sua força através da natureza. É assim que faz sua única amizade no país estrangeiro: Isar, rio-fêmea, que também ganha voz na narrativa, visto que é o único ser que entende a língua de Iñe-e.

O que a autora traz, como muito lirismo e subjetividade, é a conexão dos povos indígenas com a terra, algo que o homem branco nunca vivenciou, já que pratica violências por sua incapacidade de olhar para o outro, seja a floresta, ou alguém de sua própria espécie.

O indígena é despersonificado de semelhante nos escritos dos cientistas, resgatados no romance, sendo Iñe-e e Juri, o garoto que também sobreviveu à viagem, duas crianças “resgatadas” de um povo hostil e desumanizado, sendo até as crianças, muitas das vezes, tratadas como seres totalmente diferentes, seja pela cultura, aparência ou linguagem.

O processo de apagamento começa desde as primeiras páginas e avança ao longo da narrativa. Em um trecho, Iñe-e acorda sobressaltada por esquecer o timbre da voz de alguém que lhe é muito querido. Se não estivessem vivos na memória da menina, seriam levados para longe dela.

O passado e o presente

No romance, a autora trabalha várias temporalidades simultaneamente. O passado, presente e futuro estão sempre em contato ao longo da narrativa. É aí que temos a introdução da personagem Josefa, uma mulher paraense, migrante em São Paulo e ainda em busca de suas origens. Ao encontrar os retratos da menina miranha e do menino juri em um museu na capital, Josefa se compadece das crianças como se ela mesma tivesse sido roubada de sua história.

O romance tem como foco recuperar essas vozes perdidas no passado e no nosso presente, pois é certo que violências que apagam o registro de existência de povos, crianças e mulheres ainda continuam acontecendo. Tendo isso em mente, o Som do rugido da onça serve de alerta e lembrete de que não podemos nos esquecer de ouvir quem um dia foi silenciado.

“Esta é a história da morte de Iñe-e. E também a história de como ela perdeu o seu nome e a sua casa. E ainda a história de como permanece em vigilância. De como foi levada mar afora para uma terra de inimigos. E de como, por artes deles, perdeu e também recuperou a sua voz.”

A escritora deixa claro que Iñe-e não é qualquer menina, ela é protegida da Grande Onça, e ao mesmo tempo que é temida por alguns de sua aldeia, também é respeitada. Essa ligação do seu encontro com a onça no dia em que se perdeu marca toda a sua trajetória, desde este dia até o último. Iñe-e tem na onça a ideia de proteção, cuja imagem evoca constantemente.

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Gabrielle Abreu
Lado M
Writer for

Estudante de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP. “Para escrever basta começar. “