Os Números do Amor e o autismo feminino

Thais Lombardi
Lado M
4 min readOct 7, 2018

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A mãe deu um tapinha na mão de Stella e em seguida a segurou. ‘Então ele pode ser uma boa opção para você. Talvez entenda melhor a questão do Asperger se também tiver suas dificuldades’. Apesar de ditas com convicção, as palavras soaram antinaturais e exageradas aos ouvidos de Stella. Uma rápida olhada para as mesas da área externa arborizada do restaurante a certificou de que ninguém tinha ouvido. Stella ficou observando aquela mão sobre a sua, fazendo um esforço consciente para não a puxar de volta. Contatos físicos não solicitados a incomodavam, e sua mãe sabia disso. Fazia aquilo justamente para que se ‘acostumasse’. Na maior parte das vezes, só a deixava irritadíssima.

Histórias de amor são receitas quase infalíveis para o sucesso de um livro ou qualquer outra obra: o mocinho, a mocinha, um antagonista, clímax, conflitos e etc. Você pode revisitar muitos filmes e livros e comprovar que seguem uma velha fórmula. Porém, o que nos cativa é como esses elementos são trabalhados.

Os Números do Amor (Companhia das letras, 2018) é um livro que segue essa fórmula de maneira surpreendente: Stella é uma profissional bem sucedida, rica, solteira e possui Asperger, um transtorno do espectro autista caracterizado por grandes dificuldades em interações sociais.

Sua mãe a pressiona para arrumar um marido e filhos, porém ela não fica à vontade com nenhum homem, até que ela contrata Michael, um garoto de programa, para ajudá-la com sua falta de jeito no sexo.

Além disso, Michael é um talentoso estilista que trabalha fazendo pequenos reparos na lavanderia da sua mãe que trata um câncer.

Lembrou de algum filme? Isso mesmo, a autora Helen Hoang se inspirou em Uma linda mulher, mas com papéis invertidos. E utilizou da falta de traquejo social de Stella como razão para ela precisar de um acompanhante.

Mais do que só escrever sobre Asperger, a autora utiliza o livro Os Números do Amor como um processo para entender o que também acontecia com ela, ou seja, Stella foi construída com conhecimento de causa, validando muito mais seus tiques, manias, ansiedade e comportamento.

Ao tocar em assuntos tão delicados, Hoang trata com delicadeza e total respeito sua protagonista e com muitos detalhes a cultura familiar de Michael. Nada é chacota ou caricatura, é um retrato real e sensível dos personagens, que possuem momentos ruins e bons e mudanças de humor.

Por mais que possamos prever o final, é impossível ler poucas páginas. Ao mesmo tempo que o silêncio de Stella sobre sua condição nos deixa aflitos, ficamos também presos à escrita leve, agradável e repleta de detalhes que nos levam a imaginar e sentir até o cheiro e a textura das roupas que incomodam Stella. Também ficamos curiosos em saber qual será o próximo passo: será que Michael vai descobrir? Eles estão apaixonados? A mãe de Michael morre?

Essas e várias outras dúvidas serão respondidas durante o livro, mas o mais importante é que o amor e empatia podem aparecer nos lugares mais estranhos e devemos estar abertos às mudanças, desde que não seja por pressão de alguém. Além de prestar contas à sociedade, devemos ser coerentes com o que nós somos.

Autismo feminino

Stella é uma personagem privilegiada, pôde ser diagnosticada com Asperger cedo e sempre entendeu que ela apenas tinha uma maneira diferente de enxergar o mundo, mas no mundo real isso muitas vezes não acontece.

A autora foi somente diagnosticada aos 34 anos e mesmo assim depois da sua filha também receber o mesmo diagnóstico.

A maioria das pesquisas sobre autismo foram feitas com homens, mas o autismo se manifesta muito diferente entre os sexos. Além disso, testes para asperger são baseados em critérios avaliativos baseados em comportamentos masculinos, atrapalhando muito o diagnóstico de meninas que, mais tarde em sua vida podem apresentar ansiedade, depressão, anorexia e outros distúrbios.

Muitas mulheres só descobrem o Asperger quando seus filhos são diagnosticados, mas por quê?

Mulheres autistas também sofrem com pressões sociais. Elas passam a mascarar seu comportamento para serem socialmente aceitas: copiam comportamentos das suas amigas na escola, no trabalho e os da família, assim, vivem uma vida que não as pertence, sempre em estado de alerta diante de situações sociais exaustivas (mentalmente e fisicamente).

Entender o Asperger pode ser uma libertação para pessoas que sentem “diferentes”. Um diagnóstico correto permite iniciar uma terapia, entender os pontos fortes, fracos e o que pode ser trabalhado.

Para quem se interessar, segue algumas leituras indicadas pela autora sobre o autismo feminino:

-Aspergilrs, de Rudy Simone
-Everyday Aspergers, de Samantha Craft
-Autistic Woman’s association: https://www.facebook.com/autisticwomensassociation/

Leituras indicadas em português:

-http://mundoasperger.com.br/autismo-no-feminino/?v=19d3326f3137
-https://sindromedeasperger.blog/
-http://www.institutoinclusaobrasil.com.br/mulheres-e-jovens-com-sindrome-de-asperger/

ATENÇÃO: não faça o autodiagnóstico, procure sempre um profissional!

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Thais Lombardi
Lado M
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Cineasta, redatora, revisora, feminista e vegetariana. Gosta de ler, gatos, fazer crochê e destruir o patriarcado.