Outros Jeitos de Usar a Boca é um livro para encarar a dor — e superá-la
Eu nunca terminei um livro de poesia antes. Sinceramente, eles nunca foram muito atrativos para mim. Talvez seja por eu não conseguir ver além da subjetividade e me conectar com um personagem implícito, ou talvez pela falta de uma história que me prendesse. Mas com o livro Outros Jeitos de Usar a Boca foi diferente.
A personagem ali é muito clara: é a autora, Rupi Kaur, são todas as mulheres e também sou eu. E são as nossas histórias — as que muitas de nós vivemos, que tememos viver ou que torcemos para que nossas filhas nunca vivam.
A escritora, artista plástica e feminista Rupi Kaur nasceu na Índia e imigrou com os pais para o Canadá aos 4 anos de idade. Começou a desenhar aos 5, por incentivo da mãe, e aos 12 descobriu o gosto pela escrita. Outros Jeitos de Usar a Boca é seu primeiro livro, inicialmente uma publicação independente que, devido ao sucesso feito na internet, foi comprada pela editora Andrews McNeel Publishing. Quando chegou ao Brasil pela Editora Planeta, no início deste ano, mais de um milhão de cópias já haviam sido vendidas pelo mundo.
Outros Jeitos de Usar a Boca é dividido em quatro partes: a dor, o amor, a ruptura e a cura.
A dor
No primeiro capítulo, Rupi Kaur abre sua alma e mostra, através de palavras cruéis, mas necessárias, o que é ser mulher no mundo em que vivemos. Naquelas páginas de Outros Jeitos de Usar a Boca são expostos traumas, abusos, sofrimentos, inseguranças. O abandono e a insensibilidade paterna, o silenciamento, o estupro, a solidão. O machismo que vemos todos os dias, registrado em forma de poesia e desenhos de traços delicados. Dói, como não poderia deixar de doer.
“nossos joelhos
arreganhados
por primos
e tios
e homens
nossos corpos manipulados
pelas pessoas erradas
que mesmo numa cama segura
sentimos medo”
O amor
Em ‘o amor’, Outros Jeitos de Usar a Boca se torna mais leve, mas não deixa a intensidade de lado. Entre declarações apaixonadas e diálogos românticos, vemos também o descobrimento da sexualidade e o amor pelo próprio corpo. Fica a mensagem de que existe felicidade, mesmo entre os momentos de dor. Os traumas podem ser superados — e o amor, tanto por nós mesmas como pelos outros, é a chave dessa cura. Mas nem sempre ele é real e nem sempre ele pode durar ou nos fazer bem — e é aí que entra o capítulo seguinte.
“eu sei que eu
devia desmoronar
por motivos melhores
mas você por acaso já viu
aquele menino ele deixa
o sol de
joelhos toda
noite”
A ruptura
Para qualquer pessoa que já esteve em um relacionamento romântico, é muito difícil não se ver nas palavras melancólicas e muitas vezes agoniadas do terceiro capítulo, denominado ‘a ruptura’. Essa parte de Outros Jeitos de Usar a Boca é toda dedicada à superação do amor que não deu certo, desde o momento em que ainda estamos cegas pela paixão, passando por períodos de fraqueza, mágoa e vontade de voltar, até a aceitação de que o relacionamento é tóxico e de que é preciso seguir em frente.
Nas últimas páginas do capítulo, uma lista de tarefas pós-término que, acredito, todo mundo precisa seguir em algum momento da vida. Por fim, a compreensão: “o jeito como vão embora diz tudo”. Sete palavrinhas que soam quase como o abraço apertado de uma amiga, dizendo que “a culpa não é sua, a forma como ele te destruiu no final é a prova de que precisava acabar”.
“eu não fui embora porque
eu deixei de te amar
eu fui embora porque quanto mais
eu ficava menos
eu me amava”
A Cura
O último capítulo, ‘a cura’, é empoderamento puro. O amor próprio, a aceitação e a sororidade são retratados em poemas que nos enchem de confiança e de certeza de que, apesar de tudo, não estamos sozinhas e ficaremos bem. Em um vídeo de seu canal no Youtube, Rupi Kaur diz que usa a escrita como uma ferramenta de cura, e é exatamente isso que se percebe ao final de Outros Jeitos de Usar a Boca.
Ao decorrer do livro, todas as mágoas, medos e abusos vêm à tona, como se um nó na garganta finalmente se desfizesse. Uma vez enfrentados os traumas de uma sociedade machista, é possível enxergar a cura no feminismo e no amor.
Originally published at www.siteladom.com.br on April 27, 2017.