Paz para nós em nossos sonhos e a mulher na busca de respostas

Eloane Berto
Lado M

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“O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu”, declara a personagem G.H de um dos romances de Clarice Lispector. Em tempos de textões de Facebook e buscas por terapia, a palavra parece ser a única com o poder de exprimir nossas angústias e anseios. Mas será realmente que ela é suficiente?

Nessa reflexão sobre os limites da linguagem e a solidão contemporânea é que se constrói a narrativa de Paz para nós em nossos sonhos, filme lituano de 2015, escrito e dirigido por Šarūnas Bartas, que também interpreta um dos personagens.

O cenário da produção é uma casa de campo, onde o personagem de Bartas viaja com sua filha e esposa, madrasta da menina. Nenhum dos personagens é nomeado, as falas são escassas no início do filme e na maior parte do tempo a trilha sonora é preenchida por sons da natureza. O ambiente bucólico e a falta de aproximação entre os personagens gera um mal estar no espectador, pois a família parece não ter nenhuma relação profunda, como numa espécie de retrato das relações contemporâneas. Porém, é interessante notar que as personagens femininas são essenciais para o desenrolar da narrativa, já que são elas que agem na busca de diálogo com os outros personagens e promovem entendimento sobre suas próprias vidas.

A esposa do personagem de Bartas, por exemplo, é uma violinista apaixonada pela música, mas que, sem sucesso com o seu trabalho, faz da bebida um escape, ou melhor, uma forma de se fazer existir. Como uma fuga para a melancolia, ela também busca uma aproximação maior com o marido, através de questionamentos como: “O que você sente?” ou “No que está pensando?”, numa tentativa de compreender o parceiro e, ao mesmo tempo, também se compreender. É evidente um sentimento de desterro na personagem, que parece não se sentir pertencente ao mundo e nem achar espaço nele através da música. Assim, em uma das cenas finais, ela diz ter a sensação de se sentir “pequena, quase invisível, quando me mexo, existo”.

Já a sua enteada, embora não tenha muito contato com a madrasta, está sempre observando a relação desta com o pai através da janela, num gesto que representa seu sentimento de abandono. Porém, a personagem também é ativa e busca a compreensão do que acontece ao seu redor. Em um diálogo com um garoto de sua idade, ela procura descobrir mais sobre ele através de questões como: “De que estação do ano você mais gosta?” ou “Você tem alguém com que possa conversar abertamente?”. Tais perguntas de construção e conteúdo simples podem parecer infantis em um primeiro momento, mas são uma forma de ilustrar o nível de distanciamento emocional entre as pessoas e a falta de profundidade das relações pessoais.

Além dos questionamentos das duas personagens do núcleo familiar, há ainda a presença de uma terceira, amiga do personagem de Bartas, que, em uma visita à casa de campo no meio da noite, inicia uma conversa agradável com o amigo, até que em um momento ela começa a chorar. No final do diálogo, conclui: “Eu estou louca, completamente louca”. Tal reação é interessante pois parece ter a intenção de retratar uma geração que, embora procure sempre achar que está tudo bem, também não tem respostas para sua vida.

Outra cena importante para pensar a questão feminina é a violência doméstica sofrida por uma senhora, vizinha da família, situação esta que resulta em um final trágico. A questão da violência não é tratada de forma superficial, mas demonstra as sutilezas de um relacionamento abusivo, como as questões afetivas envolvidas, deixando o espectador que procura estereotipar a questão, bem confuso em relação aos reais sentimentos da personagem.

Após diversos diálogos fragmentados e uma chamada constante para a reflexão do espectador, a questão central do filme parece sintetizar-se no último diálogo entre pai e filha, no qual esta afirma não saber o que está acontecendo e que não consegue achar palavras para explicar o que sente, que, nessa altura, também são os mesmos questionamentos de quem está no cinema. Porém, a esperança de que haja alguma resolução para os impasses é quebrada com a resposta do pai: “Se tudo ficasse claro, o que você faria?”.

O filme não é só um retrato de uma geração, mas vai mais além: é o retrato das nuances da linguagem e uma reflexão sobre a solidão humana. Não há respostas ou um final feliz, como espectadores desavisados podem esperar, mas sim um vendaval de questionamentos. A busca dos personagens se mistura com a busca de nossos próprios caminhos, ambos envolvidos em um sentimento de falta de compreensão, mas ao mesmo tempo sentindo um impulso de continuar seguindo, simplesmente vivendo dia após dia.

Diante disso, talvez o que nos reste seja o último conselho do personagem de Bartas para sua filha, que parece ser direcionado para os que estão angustiados dentro e fora da tela, e que ao mesmo tempo estampa o título do filme: “Vá atrás de seus sonhos”.

Pois talvez somente lá esteja a paz.

Originally published at www.siteladom.com.br on May 31, 2016.

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