Pequeno Segredo merece sim ser candidato ao Oscar
Antes pegar a pipoca (com muita manteiga, por favor) e embarcar em uma história cinematográfica, para analisar suas nuances, personagens, catarses, planos, contra planos, fotografia e tudo o que dialoga com um espectador quando se trata da sétima arte, é preciso ver o que a obra dialoga também com a realidade fora das telonas, sobretudo quando se trata de uma produção nossa, nacional. No caso, Pequeno Segredo, longa dirigido por David Schurmann e que é a bola de vez por ser o candidato brasileiro ao Oscar.
Ao ser escolhido como representante brasileiro para conseguir uma indicação ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira, Pequeno Segredo sofreu várias críticas devido a outra produção nacional: Aquarius, do diretor Kleber Mendonça Filho. Aquarius passou por Cannes, foi bem recebido pela crítica, está rodando o mundo e é um filme maravilhoso. O que os espectadores do filme e o próprio diretor dizem, é que a obra não foi indicada para concorrer ao prêmio americano devido ao episódio do protesto da equipe na premiação na França, contra o impeachment de Dilma Rousseff. O próprio enredo revela em suas entrelinhas e entre cenas, um Brasil feito o edifício-personagem da obra, cheio de memórias esquecidas e abandonadas. e também há o mérito de que quem conduz a narrativa a todo o momento é uma personagem feminina central, vivida impecavelmente pela atriz pela Sônia Braga.
Por isso, ao analisar Pequeno Segredo, precisamos ter atenção. O filme não é melhor que Aquarius: os dois são muito bons, cada um a sua maneira. No caso de Pequeno Segredo, o mérito está no fato de promover uma grande reflexão sobre o feminino. Elas regem a história, os tempos e os ciclos dos desfechos, e o filme é lançado justamente em uma época em que nunca se falou tanto sobre o papel das mulheres.
A trama se desenrola em três eixos que se cruzam: Heloisa, vivida pela atriz Julia Lemmertz, uma mulher que vive com a família velejando pelo mundo; Jeanne uma jovem amazonense que vive uma história de amor com um estrangeiro, interpretada pela atriz Maria Flor; e Bárbara, uma senhora que vai se amargurando ao decorrer dos anos, vivida pela atriz irlandesa Fionnula Flanagan. Tudo gira em torno de Kat, uma menina que amarra os laços das demais personagens, vivida pela atriz Mariana Goulart.
Aqui mais um parêntese: o filme é baseado em uma história real. Kat foi adotada pela família Schurmann, a família de Santa Catarina que ficou conhecida por velejar pelo mundo. Heloísa Schurmann conta a história da menina em seu livro que leva o mesmo título do filme, dirigido por um dos seus filhos. Eis uma obra em que os laços familiares, sanguíneos ou não, estão presentes dentro e fora do set.
Diferente de muitas produções brazucas e gringas, os personagens masculinos estão em segundo plano. São as mulheres que, cena após cena, revelam os detalhes de um pequeno segredo que atinge a vida de todas: a menina, a jovem, a mãe e a avó. Gerações que até parecem brincar com os arquétipos femininos e os ciclos da mulher, tocando em assuntos particulares do nosso universo: maternidade, sexualidade, afetividade, crescimento, aceitação, mutação, vida e morte.
O desenho dos laços construídos umas com as outras dão o tom de sua sofisticação, apontando a sua importância na construção de um caminho solitário, porém universal, de autoconhecimento. As personagens femininas, que aparecem a cada quadro do filme, parecem também habitar em nós em instâncias mais subjetivas.
Outra abordagem que conduz o desenrolar dos acontecimentos é curiosamente a água: o mar, o rio, cenas em piscinas e banheiras traçam uma analogia de como a vida nos conduz para além das nossas rotas, e que de vez em quando precisamos de terra firme para estabelecer novamente nossas raízes e reencontrar nossas origens e a nós mesmas.
Não podemos falar que houve uma intenção feminista por trás do filme ou que ele levanta bandeiras em prol do empoderamento. Mas não é possível negar o fato de que é muito importante, em meio a tantos filmes com personagens masculinos como protagonistas, o surgimento de uma obra que traz justamente personagens femininas em primeiro plano.
Originally published at www.siteladom.com.br on October 5, 2016.