Poliamor: liberal só até a página 2?

Lado M
Lado M
5 min readNov 16, 2015

--

Manter um relacionamento a dois é uma tarefa bastante complicada. Tão complicada que, muitas vezes, chega a superar a complexidade de lamber o próprio cotovelo ou de fazer muitas das posições sugeridas pelo Kama Sutra.

Reconheçamos: a monogamia praticamente carrega consigo um contrato que diz que você deve direcionar todo seu amor, olhar e desejo para uma única pessoa pelo resto da sua vida (sim, pelo resto-de-sua-fucking-vida!). Pré-dispondo de muitos outros questionamentos e tensões, especialmente no que concerne ao paradoxo da traição, aos poucos a heterogeneidade monogâmica vem sendo desmontada, e é cada vez mais comum vermos relacionamentos abertos por aí.

Outro ponto é que, cada vez mais, as pessoas têm buscado viver aos seus próprios moldes e gostos, e, se dentro dessa tendência está liberado beijar outras bocas, por que não seria permitido amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo?

Questionando antigas concepções sobre esse sentimento frequentemente explorado por poetas e cientistas que tentam, frustradamente, mapear seus sintomas e causas, o poliamor surge em oposição às relações monogâmicas e ao amor quadrado. Assim como namoros e casamentos não mais se resumem à heterossexualidade ou à indissolubilidade, já não se busca a outra metade da laranja ou a exclusividade, mas sim a liberdade em um mundo tão plural.

Mais uma vez, no entanto, estamos falando de relacionamentos, uma particularidade que não permite às relações livres fugir à regra das complicações e — pasmem — das problematizações.

Mesmo que na teoria seja lindo, devemos reconhecer a existência de uma prática um tanto quanto descompassada. Isso porque essa forma “livre” de amar perde sua beleza e seu ímpeto revolucionário ao reproduzir em seu discurso o machismo existente em nossa sociedade, assim como já acontece em relacionamentos de um par só.

Toda essa discussão se inicia a partir da constatação de que ter múltiplos relacionamentos não exige esforço algum por parte dos homens, quiçá é até um mérito para comprovar que o cabra é macho e que seu falo é poderoso. Enquanto isso, acho que não preciso nem passar pela represália sofrida pela mulher que se dispõe a ter mais de uma pessoa em sua vida, não é mesmo? “Puta”, “biscate”, “vadia”, “rodada” e vários outros elogios que me dão preguiça só de tentar lembrar.

Esse é, certamente, um olhar mais conservador para a situação proposta. Se migrarmos para o mundo das relações livres propriamente dito, entramos em contato com esquerdo-machos e com um patriarcado que chega mais de mansinho. Aqui, lidamos com uma realidade onde a mulher que não aceita abrir o relacionamento é a monogâmica do rolê, a careta, a antiquada.

Há relacionamentos abertos que vão muito bem, obrigada, mas outros nem tanto. Quantos casais, por exemplo, já não resolveram voltar à monogamia depois que a mulher colocou em prática o acordo da relação livre? Quantos caras já não tiverem crises de ciúmes ridículas após suas parceiras terem ficado com determinada pessoa que não o tenha agradado, ou então tentaram limitá-las dizendo com quem elas poderiam ficar ou não? É, amiga, não é porque seu relacionamento é aberto que ele não pode ser abusivo.

No âmbito das relações poliamoristas, as quais, diferentemente das relações abertas, envolvem relacionamentos afetivos-sexuais com mais de uma pessoa, também é possível identificar resquícios da legitimação masculina enquanto categoria privilegiada. Apesar de ter um “forte apelo à igualdade e regras entre os envolvidos”, nem sempre esse discurso de paz e amor se faz verdadeiro, o que atribui a ele características poligâmicas (ao contrário do poliamor, a poligamia é reiteradamente machista; ela corporifica, portanto, a lógica de que mulheres não podem ter outros parceiros ou parceiras, além de nelas vislumbrar a função de servidão ao homem).

Ao conversar com Nathalia*, ela conta um pouco sobre sua primeira e atual experiência com o poliamor. Nathalia, recém chegada à São Paulo, se relaciona com Raphael e Elisa, um trisal aberto, que se entende livre para amar e se envolver com quem bem quiser.

“Quando me peguei apaixonada por dois caras e me sentindo ‘errada’, fui buscar na internet sobre poligamia, que era o nome que eu tinha pra relações não monogâmicas, e acabei achando poliamor. Só dentro de grupos e em debates é que me entendi e me empoderei como mulher e feminista. E sim, existe essa brecha normativa mesmo dentro do poliamor ainda, pois exige muita desconstrução de ambas as partes”.

Apesar de estar envolvida com duas pessoas, os parceiros de Nathalia, Raphael e Elisa, possuem outros relacionamentos. Como num poema de Carlos Drummond de Andrade ou em uma versão mais moderna da canção de Chico Buarque, Raphael não ama só Elisa e Nathalia, como também ama Cristina que ama Henrique, que também ama Elisa e é amado por ela.

Ela também diz que, por ser feminista e se relacionar com um homem, isso a faz perceber mais ainda o “não querer perder a supremacia masculina” das relações. “É inerente ao homem que ele não perceba que certos movimentos que ele faz, mesmo que involuntariamente, são machistas. São movimentos menores e mais velados que até nós, como mulheres, não conseguimos perceber num primeiro momento”.

Não nos compete, dessa forma, fazer duelar as possibilidades de relacionamentos existentes, mas abrir os olhos para questões muito mais profundas que permeiam tanto o tradicional, quanto o inovador. É fazer perceber que a libertação sexual feminina, então, passa a ter outra conotação e outros fins, senão uma conquista para as mulheres, mas a sustentação do privilégio masculino.

Desconstruir modelos de relacionamentos previamente edificados sobre estruturas pouco flexíveis é um constante desafio e, nesse sentido, qualquer proposta que se contraponha ao tradicional para priorizar nossas vontades é totalmente válida. O que não podemos permitir é que velhas opressões se prenunciem libertárias sob o disfarce de novas máscaras, quando, na verdade, ser liberal até a página 2 não exime o seu parceiro da culpa de não saber reconhecer seus privilégios.

*Apesar de ser assumidamente não-monogâmica, Nathalia prefere não identificar seu nome ou o de seus parceiros. Ela não considera que a exposição seja saudável neste momento, considerando que eles ainda estão em processo de aceitação com a família

Originally published at www.siteladom.com.br on November 16, 2015.

--

--