Por que a Lei do Feminicídio é necessária?

Maria Alice Gregory
Lado M
4 min readMar 11, 2015

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Em 2015 foi sancionada a Lei do Feminicídio, que inclui no grupo de crimes hediondos o assassinato de mulheres por razão de gênero e violência doméstica. Embora a lei seja um grande avanço no entendimento da violência contra a mulher no país e comprove uma preocupação crescente do aparato judiciário com a proteção de nossas cidadãs, ainda tem quem ache que a lei é uma vitória do “movimento de supremacia feminina organizado por essas feministas que querem o fim da família tradicional!”. Calma aí, gente.

Primeiro de tudo, vamos lembrar alguns dados (horríveis, no caso): o Brasil é o sétimo país no ranking mundial de homicídios femininos (elaborado pelo Mapa da Violência em 2012). A cada 12 segundos, uma mulher sofre algum tipo de violência (física ou sexual) e a cada 1h30 uma mulher morre vítima dessas agressões. As mulheres também compõem a esmagadora maioria das vítimas de violência doméstica e são as únicas que são agredidas por seus parceiros somente por questões de gênero — ou seja, pelo fato de serem mulheres. Sendo assim, não dá pra negar: o Brasil é um país agressivo com as suas mulheres.

A lei surge então com o objetivo de tentar reduzir as taxas de homicídio feminino no país, uma vez que, na primeira década dos anos 2000, mais de 43 mil mulheres foram assassinadas por questões de gênero (quando envolve violência doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação à condição de mulher), aproximadamente 12 por dia. De acordo com a nova lei, esse tipo de assassinato passa a ser incluído entre os tipos de homicídio qualificado, sendo a punição para esse tipo de crime — além de inafiançável e imprescritível — a reclusão de 12 a 30 anos (enquanto a pena para homicídio simples varia de 6 a 20 anos). A Lei do Feminicídio também prevê o aumento da pena em um terço se o crime acontecer durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto ou se for contra idosas, adolescentes ou pessoa com deficiência. O mesmo vale no caso de o assassinato ter sido cometido na presença de parentes da vítima.

Explicado o por quê da Lei do Feminicídio, vamos a mais alguns entendimentos:

Mas como assim mulher morre só por ser mulher? Isso é coisa de serial killer, não pode generalizar esse tipo de caso dessa forma.

Da mesma forma que estupradores são comumente livrados de culpa pelo senso comum de que estes são criminosos muito específicos e psicopatas (quando na verdade podem ser qualquer um, de conhecidos, amigos e colegas a namorados, pais e irmãos), o assassinato de mulheres por questão de gênero é comumente entendido como algo específico de serial killers que têm alguma tara por vítimas de um gênero diferente do seu. Vamos entender uma coisa: quando dizemos que uma mulher morreu por ser mulher, não estamos dizendo que o seu algoz simplesmente olhou pra ela e pensou “pô, mulher, vou matar”. A violência de gênero está relacionada a todas as esferas da opressão machista sobre a vivência de uma mulher, de forma que pode constituir esse tipo de agressão qualquer ato pautado por um motivo misógino (“não gosto que você saia com essa roupa”, “não lavou os pratos ou não cuidou da casa”, “estava de papinho com o vizinho, tava querendo alguma coisa”, “saiu tarde e ficou bêbada na balada é porque estava procurando encrenca”, “não quis transar comigo”, e por aí vai).

Mas a vida de um homem não tem o mesmo valor da vida de uma mulher? Pra quê diferenciar a pena?

A vida de todo mundo tem o mesmo valor. De todo mundo: a sua, a minha, a do seu chefe no trabalho, a do morador de rua que você passou batido, a do menino que roubou seu celular outro dia, a da Dilma, a do Aécio, todo mundo. O que entra na questão de diferenciar o feminicídio de um homicídio “comum” é justamente a motivação. Se aconteceu por um motivo misógino e exclusivo à esfera e à vivência feminina, então é um caso diferente do que seria se uma mulher reagisse a um assalto e levasse um tiro de seu assaltante, por exemplo. A lei não quer dizer, em nenhum momento, que tá liberado matar qualquer um que não seja mulher ou que ser mulher te torna de alguma forma superior aos outros, de forma que te matar seja pior do que matar outras pessoas. O que entra em questão é que, nos casos de violência de gênero e de violência doméstica, a grande maioria (pra não dizer que a quase totalidade) dos casos têm como vítima a mulher, de forma que diferenciar esse tipos de homicídios favorece o reconhecimento de que a questão de gênero interfere sim em sua vida e que é necessário um aparato judicial diferenciado nesse tipo de caso.

Bom, então vocês devem estar completamente satisfeitas com essa nova lei, certo?

Não totalmente. A Lei do Feminicídio originalmente previa a diferenciação do homicídio no caso de uma violência de gênero, mas quando chegou de fato ao momento de ser sancionada já tinha sido alterada para violência de sexo. Como uma palavrinha boba como gênero-sexo pode fazer diferença? É muito simples: a lei não prevê a inclusão de travestis e mulheres trans. Justamente por remeter a algo físico (no caso, o “sexo” se refere ao aparelho reprodutor da vítima, que na visão da lei designa o seu gênero), a lei abre portas para interpretações de que as penas prolongadas não devem ser aplicadas a assassinos de mulheres que não se encaixam nesse padrão. A alteração é completamente transfóbica e precisa ser questionada. Mulher não se resume ao que tem ou deixa de ter entre as pernas e não vamos ficar satisfeitas com lei que diga o contrário.

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Originally published at www.siteladom.com.br on March 11, 2015.

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