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Decidi não ficar mais em silêncio sobre meu caso de estupro

Lado M
Published in
4 min readJan 27, 2017

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Mais uma vez eu chegava atrasada na aula. Era sempre melhor evitar horários em que havia muita gente nos corredores da faculdade. Eu nem levei bronca do professor como imaginava que seria.

Era no segundo andar do prédio principal. Fazer xixi lá era um risco, eu já tinha visto o que estava escrito. “********* assediador! Fora da atlética já!”

Doeu ou foi confortável saber que eu não era a única? O vazio veio de novo quando vi aquilo pela primeira vez. A palpitação, o suor, a tremedeira, a visão ficando branca, uma mão pesada no meu peito esmagando meu esôfago.

Com a calcinha no joelho lembrei de quando cheguei em casa e nela tinha sangue. Naquele dia, eu também estava tremendo e minha mãe perguntou “Que tá acontecendo?” e eu respondi “Me desculpa, exagerei na bebida de novo”. “Ê laiá, toma cuidado com esses exageros, menina. Se passar mal me chama”. Era tarde demais.

Será que ela ficaria mais triste se eu deixasse de existir ou se soubesse que nada do que ela me ensinou adiantou? Era isso que eu pensava nas noites que não conseguia dormir. Viver assim é melhor que morrer?

Você podia tentar, é só tomar umas cartelas de ibuprufeno que você é alérgica com alguma bebida. Dramin também para não vomitar. Igual naquele livro que você leu. Você gostou dele, mas não ia ler mais livro nenhum. Nem ouvir nenhuma música. Ainda tem coisas que eu gosto e eu não vou mais fazer nenhuma delas.

Não pensa nisso, sua vida é boa. Você tem amigos. Se você contar, vai sobrar um ou outro, mas um ou outro é o que importa. O que importa é a verdade. Você vai conseguir, você é forte. Só não hoje, mas amanhã pode ser que você sinta diferente. Espera até amanhã.

Me limpei e saí do banheiro.

Agora, de novo, eu ia ter que entrar lá. Não devia ter levado água e bebido a garrafa inteira durante a aula. Puta merda, agora eu não posso nem beber água. Eu posso ir no andar debaixo. Lá também pode estar escrito. Eu não vou descer só pra mijar, isso é ridículo. Que patética. Eu não tenho que passar por isso só pra mijar. Tudo bem, é só evitar a segunda porta. Certeza, era a segunda. Só não queria aquela sensação de novo.

Entrei na terceira e lá estava. Eu confundi ou escreveram em todas as portas? Não tive coragem de conferir.

Olhei para a letra de forma. Bonita. Quem será que ela era? Quem divide essa sina comigo? Será que eu a cumprimento no corredor e não sei que é ela? Será que é aquela conhecida que adicionei por educação no Facebook? O que ele fez com ela? Meu ônibus podia ter passado aquele dia, mas ele tentaria depois com outra. Aquele dia não escapei, mas quantas outras vezes eu já tinha escapado sem saber? Quando me perdi de todo mundo na festa ou quando voltei sozinha de noite para casa e deu tudo certo? Se não fosse você quem será que teria sido?

Pode ter uma desconhecida passando por isso agora e amanhã vou sentar do lado dela no metrô. Todas as regras, conhecimentos e cuidados não teriam adiantado nada. Aquele textão que escrevi no Facebook sobre o número alto de mulheres que são estupradas por conhecidos e pessoas próximas não adiantou. Eu falei “não”, mas não adiantou. Nenhuma prevenção funciona quando seu consentimento não é importante. A culpa não é sua. Uma coincidência infeliz pode fazer com que você seja a próxima, porque haverá uma próxima. Agora entendi porque sempre tive tanto medo de ser estuprada: porque, por mais que eu me previna, um estupro não depende de mim. A culpa não foi minha.

Entre você e outra mulher existe só um triz. A única saída plena é lutar contra isso, contra os verdadeiros culpados.

Ouvi a última gota de xixi na porcelana da privada e continuava a olhar. Por que comigo?

Me limpei com aquele papel fino de banheiro público. Com as mãos úmidas de mijo, abri a mochila, depois o estojo. O marca texto rosa ia servir.

Do lado de “assediador” escrevi “estuprador”.

Não tinha mais volta. Eu não ia ficar mais em silêncio sobre o meu caso de estupro.

Originally published at www.siteladom.com.br on January 27, 2017.

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