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Por que há vítimas que escolhem não procurar a Delegacia da Mulher?

Lado M
Published in
5 min readAug 29, 2017

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Em abril deste ano, peguei o telefone e liguei para o 180. Dias antes, eu pensava se deveria ou não denunciar um ex-namorado por abuso sexual. “A justiça e a lei estão do meu lado. Não vou deixar que ele passe impune por tudo o que fez”, pensei. E, assim, disquei o número e procurei a instituição que eu pensava que fosse me acolher.

Depois de ouvir a voz eletrônica da Central de Atendimento à Mulher, fui atendida por uma telefonista. Ao contrário do que eu esperava, ela não parecia nem um pouco disposta a receber aquela ligação. Porém, apesar do tom de voz nada acolhedor, beirando a má vontade, ela fez perguntas e registrou a minha queixa. Naquela noite, ainda tive que ligar mais duas vezes para tirar dúvidas sobre o que aconteceria a partir daquela denúncia — e, mais uma vez, todas as telefonistas tinham um tom de voz duro, nada amistoso, e parecia que nenhuma delas estava a fim de falar comigo ou de me ajudar.

Cerca de um mês depois, eu já havia esquecido daquela noite em que fiz a denúncia. Porém, em uma certa tarde, o porteiro do prédio avisou que havia uma correspondência para mim. “Parece coisa séria, é uma notificação policial”, disse ele. Peguei o documento e tremi da cabeça aos pés depois de abrir a carta. Por que? Porque o texto dizia que eu era notificada a comparecer à Delegacia da Mulher para prestar esclarecimentos. E que, caso eu não comparecesse, eu iria responder pelo crime de desobediência, segundo o artigo 330 do código penal.

A ida à Delegacia da Mulher

No dia seguinte, lá estava eu na porta da Delegacia da Mulher. Como na ligação ao 180 eu havia informado que não queria abrir um processo, mas apenas registrar a queixa, não entendi muito bem o que eu estava fazendo na Delegacia. A notificação policial também não dava nenhuma informação sobre o motivo de ter que para prestar esclarecimentos.

Enquanto eu aguardava, uma certeza se firmava dentro de mim: a de que eu não queria estar ali. Eu não queria estar ali porque, no fundo do corredor, eu ouvia a voz de um homem falando alto e rindo com as funcionárias. Eu pensava “Que porra que um homem tá fazendo aqui?”. Um homem por si só, mesmo que quieto, já seria motivo de opressão naquele ambiente Agora um homem rindo e falando alto era pior ainda. O riso dele lembrava que a minha vida, assim como a das outras vítimas ali presentes, havia parado, enquanto a dos nossos agressores continuava seguindo de maneira debochadamente tranquila.

Além disso, eu não queria estar ali porque as atendentes não me tratavam com compreensão. Era como se elas não acreditassem que a minha presença e a das outras vítimas faria alguma diferença. Uma delas chegou até mesmo a dizer, para outra vítima ali presente, que o depoimento dela não iria resultar em muita coisa. Assim, ao invés de dar apoio e força, essa atitude só contribuía para que a gente se punisse internamente por estar ali.

O depoimento: como foi falar sobre a agressão

Quando fui chamada para falar com a delegada, andei pelo corredor escuro, feio e sujo da Delegacia e ficava pensando que eu daria tudo para não ter que estar lá. Eu imaginava que, assim como as outras pessoas daquele prédio, a delegada não seria diferente quanto a me dar um tratamento de hostilidade. No entanto, fui surpreendida: de todas as 8 pessoas com as quais falei nesse processo, a delegada foi a única que me tratou de um jeito acolhedor. “A gente vai colocar esse sacana na cadeia”, disse ela.

Lá, ela me explicou que, quando você registra uma queixa no 180, você obrigatoriamente vai ser intimada a depor e aí vai de você querer dar continuidade ao processo ou não. Já que eu tinha ido até lá, decidi abrir o processo, porém era protocolar que a delegada me fizesse um monte de perguntas. Perguntas essas que, para mim, eram muito constrangedoras e incômodas.

Mas como exatamente ele tocou em você? Ele pegou no seu pescoço de um jeito x ou y? E você não reagiu? Você tem provas disso?

Essas foram algumas das perguntas que eu tive que responder no meu depoimento. A delegada se esforçou para ser o menos invasiva possível. Porém, ser obrigada a reviver o meu abuso em detalhes, para poder ter justiça contra o meu agressor, foi como ser estuprada novamente.

O depois

Quando saí da Delegacia, a delegada informou que, em algumas semanas, o meu agressor seria intimado a depor. Depois desse depoimento, haveria um processo, com uma investigação. E, em algum momento teríamos que ir ao fórum, na frente de um juiz, para que tudo fosse registrado e ele fosse condenado.

Porém, quatro meses já se passaram e aparentemente nada aconteceu ao meu agressor. Ele continua feliz e sorridente, postando fotos no Instagram. Eu evito os lugares que eu costumava frequentar, por medo de encontrá-lo. Fico pensando se ter feito um escândalo na web não teria sido mais efetivo. Afinal, eu não quero o dinheiro dele, mas sim que todo mundo saiba que ele é um estuprador.

A única certeza que tenho é a de que, se uma mulher não procurar uma Delegacia da Mulher, não irei julgá-la. Ela quer evitar passar pela mesma falta de acolhimento e de empatia pela qual eu passei. Ela não quer ouvir um homem rindo no final do corredor enquanto ela está numa sala relembrando o seu estupro. E ela, sem dúvida alguma, não quer ser violentada novamente ao ter que convencer uma autoridade de que, se o seu corpo foi vítima de um abuso, ela não tem nenhuma culpa sobre isso.

Originally published at www.siteladom.com.br on August 29, 2017.

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