Precisamos falar sobre o machismo de Gus, da série Love
Original da Netflix, Love é uma série de comédia romântica que estreou sua primeira temporada em fevereiro de 2016. São 10 episódios de meia hora onde acompanhamos as histórias de Mickey (Gillian Jacobs) e Gus ( Paul Rust) se cruzarem.
Logo nos primeiros episódios de Love, vemos que ambos os protagonistas são imaturos e têm muita dificuldade de se relacionar e lidar com seus problemas. No entanto, Mickey é traçada como a garota moderninha, descolada, independente, que não se importa com os sentimentos dos outros e só se preocupa consigo mesma. Já Gus é o cara bonzinho até demais, nerd, que nunca é valorizado em seus relacionamentos e não tem muito traquejo social. Assim, os dois não teriam nada a ver.
Mas o caminho deles se cruza, eles se conhecem e começam a ter um envolvimento. No decorrer da narrativa, percebemos que Mickey tem sim muita atitude, mas é carente, insegura, um tanto quanto autodestrutiva e aceita relacionamentos péssimos não porque não se importa com relacionamentos, mas porque nunca se viu em um relacionamento saudável de fato. Já Gus, trabalha no set de filmagens de uma série como professor de uma atriz mirim, sendo que na verdade, seu sonho é ser roteirista. Isso o torna frustrado, arrogante e obcecado por “ser alguém” naquele meio. O que evidencia o retrato de uma geração que tem quase 30 anos e ainda não se estabeleceu na carreira, e muito menos financeira ou emocionalmente.
Mickey tem sim seus momentos de vacilo e egoísmo, como quando ela esquece da amiga ou se aproveita da boa vontade dela. No entanto, os vacilos de Gus têm um ingrediente extra bem incômodo: machismo.
Em certo momento de Love, Gus decide levar Mickey para um passeio especial. Ele escolhe a roupa dela (um vestido super curto) e a leva para um castelo de mágicas, que é um de seus lugares preferidos. O que acontece é que Mickey se encanta não pelos números de mágica, mas pelas pessoas que estão lá. Ela tem um outro ponto de vista e isso frustra Gus. Já incomodado com o comportamento de Mickey, Gus a leva para o show de mágicas. Ela, além de entediada, questiona o espetáculo que coloca a mulher fazendo todo o trabalho doméstico enquanto o homem lê jornal, fora o fato de não haverem mágicas mulheres no lugar.
Mais tarde Mickey começa a sentir muito frio por causa do ar condicionado e do vestido curto, e pede o paletó de Gus emprestado. De acordo com as normas do lugar, os homens não poderiam ficar sem o paletó e ele se recusa a emprestá-lo. Mickey insiste, ele empresta e o segurança os expulsa. Gus coloca a culpa na companheira e faz uma cena. Em momento nenhum ele se preocupa se ela está aproveitando ou não o lugar. Ele quer que ela veja o mundo do jeito que ele vê, do jeito que ele acha certo. Por conta disso Mickey chega a lhe dizer: “eu não acho justo levar uma pessoa a um lugar e exigir que ela tenha uma reação específica”.
Em um segundo momento, Gus recebe a oportunidade de ajudar no roteiro da série gravada no set onde ele trabalha como professor. Na sala dos roteiristas, ele faz outra cena por não ter suas ideias aplaudidas de pé. Grita, resmunga e chega até a arrancar o computador da mão de uma colega roteirista. Poderíamos facilmente classificá-lo como uma pessoa mimada.
Outro tema levantado em Love, ainda que como pano de fundo é o assédio que Mickey sofre no trabalho. As pessoas ali não estão preocupadas com o empenho e dedicação dela. O que interessa para seus colegas é o fato de ela ser uma menina padrão, logo, considerada muito bonita. Fora ser descolada, o que é encarado por seus colegas como se ela fosse uma mulher “fácil” também.
Love é uma série gostosa de assistir. Tem poucos episódios, a duração de cada um deles é curta, os diálogos têm ritmo, assim como a narrativa, e nos envolvemos com os personagens. Não é uma série sobre um casal formado por pessoas perfeitas que se apaixonam, vencem alguns empecilhos e ficam felizes.
Gus e Mickey são completamente imperfeitos. São pessoas que cometem muitos erros. Não existe algum tipo de vilão que atrapalha o relacionamento deles. Eles mesmos se atrapalham. Mas a questão que fica para a segunda temporada é saber se temas como assédio terão mais destaque ou se os comportamentos machistas de Gus serão aproveitados e trabalhados como comportamentos muito comuns nos homens, mas não corretos, ou se serão tratados apenas como imperfeições dele.
Seria valiosíssimo se tivéssemos essa discussão em uma série que se vende como desconstrutora de estereótipos de relacionamentos, porque uma coisa é construir um personagem que tem lá suas imperfeições e às vezes pode até ser insuportável e chato, outra coisa é ter um personagem que tem atitudes machistas, atitudes que só acontecem em relação às personagens femininas que convivem com ele e ele não ser criticado por isso.
O comportamento de Gus não é um traço individual da personalidade dele. É um comportamento estruturado na cultura do machismo. Muitos Gus existem. E Mickey não é só uma garota cool que fica com o cara nerd e torna a vida dele mais emocionante.
Originally published at www.siteladom.com.br on March 10, 2017.