Precisamos falar sobre o paizão do Facebook

Helena Vitorino
Lado M
4 min readMay 26, 2016

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Lá está ele, luz do sol incidindo sobre seu sorriso aberto enquanto segura o canguru junto ao corpo. Numa mão a mamadeira, no ombro a bolsa de acessórios. A legenda é curta e suficiente: “Gratidão”. Num outro recorte, ele surge com as mãos ao rosto, incrédulo e agradecido, com olhar compenetrado e sorriso contido na apresentação de balé. A legenda é “Minha princesinha”.

Ele está sempre lá, solícito e preparado, com muito humor e dedicação e aquela paciêêência de sobra. Bem emoldurado num frame do Instagram, cheio de filtros comoventes, bombando nas redes sociais: este é o pai-estático ou pai-fotográfico, aquele que circula com capa de herói e selo de pai-do-ano nas mídias, e que comove com dizeres de gratidão e sabedoria — mas que ainda não aprendeu o significado da palavra “pensão”.

Há quem compartilhe de tudo na internet, desde o café da manhã a um acidente de trânsito. E também há quem compartilhe foto dos filhos. Isso nos leva a questionar as transformações nos conceitos de privacidade e exposição, e também da veracidade nas redes. Mas um fenômeno interessante surgiu em meio a um dos momentos mais íntimos e delicados da vida: a vinda de um filho. Surge o fenômeno do “Paizão do Facebook”, que toma as redes para espelhar um cuidado inabalável que só vive na fotografia. Em suma: ser o “pai-herói” agora é cool. Tá duvidando? Pois saiba que o tema virou até fantasia de carnaval!

Não que a malandragem não seja velha, muito velha — a de fingir que tem um filho pra pegar mulher, OU PIOR AINDA, usar o próprio filho pra pegar mulher. O efeito? Causa comoção e doçura nas garotas. “Elas gostam de um cara família, de um cara sensível”. E se enaltece não só para as mulheres, mas para toda a sociedade. Como é bem visto ser um pai que faz o mínimo! A boa-paternidade se vende muito bem para o mundo, e, por incrível que pareça, os “pais solteiros” são os mais bem ranqueados. Ser “pai solteiro” é o máximo. É demais. É um encanto. O mesmo não equivale, no entanto, para as “mães solteiras”.

As expressões vêm em aspas porque, obviamente, porque filho não é estado civil. Pais e mães “solteiros” são pessoas que criam seus filhos sem estar, necessariamente, num relacionamento civil ou socialmente estabelecido. E as diferenças horrendas da situação de cada um na sociedade demonstram muito bem do que padece uma mulher que ousa ser mãe, porém não casada: não tem essa de “que exemplo!”. No lugar disso, a expressão é quase sempre “quem mandou abrir as pernas”. Tem também aquela “ruim com ele, pior sem ele”, e os xingamentos diversos que foram criados especificamente para humilhar as mulheres solteiras, separadas ou divorciadas: “chocadeira”. “Já que fez, agora crie”.

Quando um casal se divorcia e o homem assume a guarda dos filhos, é tido como digno e responsável. A mulher que “deixa” os filhos aos cuidados do pai é, no entanto, uma “desnaturada”. Na situação contrária, o pai que não assume a guarda dos filhos não é visto como “desnaturado”, muito pelo contrário: há uma naturalidade enorme em se abandonar filho no Brasil.

O Instituto Data Popular contou 20 milhões de mulheres que eram as únicas responsáveis pela criação dos filhos no Brasil em 2015. Há uma naturalidade em se abandonar um compromisso e nunca ou quase nunca sofrer com isso. Já viu depressão pós-parto em homens?

No sentido inverso, fazer o mínimo pelos filhos (e divulgar como se estivesse fazendo muito) é o que há. Recentemente foi veiculada notícia de que o ator Chris Hemsworth faz bolo de aniversário pra filha, e de tão fofo, ganha “troféu paizão do dia”. Por um bolo. De aniversário. Se estão regalando com troféus diários quem faz o mínimo pelos filhos, imagina como são presenteados os pais que comparecem às reuniões escolares, acordam na madrugada, faltam ao trabalho para comparecer ao médico e que assumem parte das responsabilidades financeiras. E, se essa lógica fosse justa, 20 milhões de brasileiras estão com déficit de troféu só no ano de 2015!

Ei, isso não é um manifesto contra os pais, porque existem sim homens que não fogem ao compromisso e vivem a paternidade de forma a realmente viver a vida com os filhos. Mas isso gera um questionamento: por que é tããão legal um paizão de Facebook todo amoroso e fake, e não uma mãe cansada e cheia de olheiras, fazendo jornada tripla já que o abençoado paizão resolveu sumir?

A hashtag “Desafio de Paternidade” questionou nas redes sociais a presença do pai no que se chama de paternidade. Dezenas de mulheres “desafiaram” os paizões das redes a irem além das fotos bonitas e apresentarem os recibos de pensão, as carteiras de vacinação, os registros de paternidade. A reação veio com a intensidade daquilo que afeta o ego masculino: insultos.

Ao paizão de Facebook, vá além! Se está fazendo bolo de aniversário ou buscando na escola, adivinhe só, não está fazendo mais do que deveria! Não interessa, de verdade, se os seus amigos estão comentando “pai-herói” nas suas fotos, se no fim do dia você continua sendo um estranho pro seu filho. E não se vanglorie dos R$ 300,00 que você gasta por mês com a SUA cria: saiba que eles não pagam nem um terço do que ser mãe-e-pai ao mesmo tempo vale.

Fontes:

http://www.divadepressao.com.br/chris-hemsworth-faz-bolo-de-aniversario-da-filha-e-ganha-o-trofeu-paizao-do-dia/ http://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2015/07/no-ap-inadimplencia-de-pensao-alimenticia-chega-60-diz-juiza.html http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/05/10/brasil-tem-mais-de-20-milhoes-de-maes-solteiras-aponta-pesquisa.htm https://www.google.com.br/#q=desafio+de+paternidade

Originally published at www.siteladom.com.br on May 26, 2016.

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