Precisamos falar sobre o privilégio no uso dos métodos contraceptivos

Helena Vitorino
Lado M
5 min readAug 28, 2017

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De repente, me dei conta de um fato que me pareceu muito grande: tenho 24 anos e nenhum filho. Me passou pela cabeça uma sensação surpresa de “sobrevivência”.

Explico: para as jovens do meu corte social, evitar a maternidade, especialmente na adolescência, era uma missão. Essa missão me fez sentir, nos últimos sete ou oito anos, que evitar a maternidade seria a tarefa mais importante a marcar minha adolescência, porque, se eu engravidasse, coisas horríveis aconteceriam comigo e com os que estão ao meu redor.

Geralmente, o que marca o início da vida adulta são as histórias trágicas sobre a “Filha da Fulana”. A Filha da Fulana tá grávida, não sabe quem é o pai e não tem pra onde ir. A Filha da Fulana tá grávida, perdeu o emprego e a família jogou na rua. A Filha da Fulana tá grávida, teve que desistir do intercâmbio e o namorado a abandonou. E eu me concentrei fortemente nesse período em não ser “a Filha da Fulana”.

A gravidez me dava um pavor absurdo. Não exatamente pela coisa de gerar ou parir, mas me arrepiava os pelos da nuca pensar nas coisas da minha vida que seriam estragadas se eu caísse nesse buraco de “gravidez na adolescência”. E mais: em quanto “desgosto” eu traria à minha família se me tornasse mãe antes do tempo.

Ainda consigo lembrar as palavras da minha mãe quando recebia a notícia de que alguma garota jovem como eu havia engravidado. “Nunca faça isso comigo e nem com seu pai”. Eram palavras duras, munidas de muitas responsabilidade e pavor. No fundo, talvez ela temesse mais do que eu sobre as consequências de uma gravidez não planejada. Porém, o medo que essas recomendações me botavam é intraduzível. Elas me faziam acreditar que uma gravidez não desejada jogaria a todos nós na lama. Eu me apavorava pensando no que as pessoas falariam de nós, sobre os nomes que chamariam a mim e à minha família, sobre a piedade dos parentes desdenhando de mim “Coitadinha, tão nova, mas também, né? Não se protegeu!”.

O tempo passou e nada disso aconteceu. E o que posso concluir dessa questão é que eu sou uma mulher privilegiada. Privilegiada, não: privilegiadíssima, porque se uma gravidez precoce não fez parte da minha vida, isso se deve ao privilégio de acesso à informação e a métodos contraceptivos que eu tive.

Falar sobre métodos contraceptivos é falar sobre privilégios

Como a maioria das jovens da minha idade, minha classe social e de educação próxima à minha, fiz de tudo para “me proteger”. A internet e as revistas adolescentes, as grandes bíblias da iniciação sexual, trouxeram uma chuva de informações que precisava ser cuidadosamente estudada, administrada e aplicada. As obviedades que hoje nos fazem rir eram verdadeiras interrogações aos dezesseis anos. É possível engravidar se ficar só nos amassos? É possível engravidar se transar durante a menstruação? É possível engravidar no primeiro mês tomando anticoncepcional? É possível engravidar interrompendo a ejaculação?

Todas essas perguntas eram bem ou mal respondidas nos meios de busca. E eu só saberia anos mais tarde o quão eu era abençoada por obter essas respostas. O nome disso é acesso à informação, e fez TODA a diferença no fato de eu ter 24 anos e não ter nenhum filho. Nas aulas de educação sexual, a turma ria quando o professor afirmava que muitas mulheres não sabiam para que servia ou como colocava uma camisinha. Porque, dentro da nossa bolha “escola particular — famílias de classe média”, todas as pessoas do universo tinham as facilidades que nós tínhamos.

E é aí que entra a “Filha da Fulana”. A “Filha da Fulana” era o estigma que todas nós queríamos evitar, porque ela era uma das criaturas mais rejeitadas da sociedade. Ninguém tinha piedade dela, que “não se cuidou e não soube evitar sua própria tragédia”. Porém, ninguém se importa se as dúvidas da “Filha da Fulana” sobre como se proteger foram ou não respondidas.

Muitas de nós estão no escuro

Assim como eu e você, a “Filha da Fulana” muito provavelmente estava no escuro, e não sabia de praticamente nada sobre educação sexual. A televisão, e principalmente as novelas, estavam muito preocupadas em ensinar como fazer, mas não como se prevenir de doenças ou como evitar a gravidez. Então eu concluí que, se minhas dúvidas eram reais, por que as da moça que engravidou na adolescência não seriam? Mais: por que cobram dela a mesma sobriedade que cobram de mim sobre o assunto, se ela não tem os mesmos recursos de informação que eu tive?

Falar sobre contracepção é abordar, necessariamente, temas de desigualdade drásticas no Brasil, de cunho social, racial e cultural. Isso porque nem todos os postos de saúde do país oferecem camisinha e pílulas hormonais. E, quando oferecerem, nem todas as mulheres de 16, 17 anos têm abertura, intimidade e respaldo da sociedade para passar no posto e pegar uma camisinha. Nas regiões mais carentes e com forte presença de comunidades religiosas, por exemplo, é comum o desencorajamento do uso de métodos contraceptivos, como forma de não desagradar a religião.

E tem mais: internet custa dinheiro, ginecologista custa dinheiro, anticoncepcional custa dinheiro. Àquelas que muitas vezes não têm recursos nem para o básico, resta permanecer na escuridão da informação e do acesso. E a quem chamamos vulgar e pejorativamente de “Filha da Fulana”, nós imprimimos duas grandes injustiças: além de marginalizar alguém que precisa de ajuda, usamos de exemplo negativo a todas as outras meninas da vizinhança, colocando-a numa exclusão absurda em seu estágio de maior vulnerabilidade.

Pense sobre a estrutura ao seu redor

Se posicionar como uma mulher madura, formada e sem filhos exige reconhecer os diversos privilégios que a estrutura em que vivo me proporcionou. “Escapar” da maternidade podendo utilizar métodos contraceptivos caros e complexos, além de poder visitar ginecologistas e tirar dúvidas, é uma vantagem esmagadora, que faz uma diferença enorme na vida das mulheres. E parar de culpabilizar as jovens que engravidam por falta de recursos e informação é parte do processo de reconhecimento do privilégio. Aos dezessete, eu batalhava para não ser a “Filha da Fulana”. Hoje, aos vinte e quatro, eu concluí que a única diferença entre mim e esta jovem são as oportunidades, e que é minha maior responsabilidade nesta situação é combater o estigma e a desigualdade sistêmica.

Originally published at www.siteladom.com.br on August 28, 2017.

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