Precisamos pensar sobre o mito do corpo delicado
Não é de hoje que o padrão de beleza ideal é imposto pela sociedade. Desde que o mundo é mundo e os seres humanos começaram a se relacionar, iniciou-se também a controversa prática do julgamento do outro pela aparência. Não podemos ignorar que, apesar das pequenas mudanças dos últimos tempos, na questão da igualdade entre homens e mulheres, a mulher sofre uma pressão muito maior sobre os cuidados com seu corpo. E essa pressão só vem aumentando com o tempo, mudando-se apenas o padrão vigente.
No Egito antigo, valorizava-se muito a simetria do corpo. Já na Grécia Antiga, o padrão era a mulher com seios fartos, coxas grossas e cintura larga. Na Renascença italiana, quanto mais cheinha e branquinha, mais bela. É possível identificar essas características através da arte da época.
Entre os séculos 19 e 20, na Era Vitoriana, as mulheres eram obrigadas a usar espartilhos apertados e desconfortáveis, os quais muitas vezes dificultavam a respiração, tudo em busca de uma cintura finíssima que ficasse bela nos vestidos pomposos.
Chegando no século 20, as variações foram cada vez mais intensas e a pressão só aumentando. Na década de 20, o visual mais desejado era o andrógino, com poucas curvas, cabelos curtos. Quando Hollywood despontou nas décadas de 30 a 50, as curvas, outrora rejeitadas, tornaram-se o objeto de desejo de todas as mulheres. Estrelas como Marylin Monroe eram referência com a sua imagem voluptuosa.
A partir de 60, as curvas vão desaparecendo e a magreza volta a ser o padrão. Nesse caso, a silhueta indefinida chega a assemelhar-se ao de uma adolescente. Em 80, as supermodels mantêm a magreza em alta, mas o corpo torna-se mais atlético e bronzeado. Na década seguinte, o visual andrógino do início do século volta à moda. Quanto mais “reta”, melhor. Principalmente nas duas últimas décadas do século, a globalização, a internet e a mídia de massa passam a exercer um grande papel de influência pras mulheres do mundo todo.
A doutora e mestre em Antropologia Social e atualmente professora da UNIFEV Mirela Berger produziu diversos trabalhos que relacionam o culto ao corpo e a identidade feminina. Do ponto de vista social, ela atribui à mídia um grande papel na manutenção desses padrões estéticos. “Pelo menos 96% da minha amostra de pesquisa de doutorado, que foi de 80 mulheres, dizem que o culto ao corpo é resultado da mídia.” Do ponto de vista da área da saúde, a opinião de Fernanda Alves Pereira, nutricionista comportamental especializada em distúrbios alimentares, não é diferente. “As modelos e atrizes aclamadas pela mídia geram um padrão de beleza surreal e muitas das pessoas que tentam segui-lo se sentem muito frustradas por não conseguir, o que acaba gerando um descontentamento constante com sua aparência, podendo inclusive desencadear num transtorno alimentar.”
O padrão de beleza atual é o “saudável”. Curvas moderadas com seios e quadris grandes, barriga chapada, pele com viço. Porém, esse corpo “sarado” é realmente saudável ou apenas aparenta ser? Blogs, instagrams, páginas de facebook sobre saúde, estilo de vida, malhação, mundo fitness se multiplicam em nível exponencial. Porém, com todos artifícios digitais e a fluidez do mundo virtual, nem tudo que se lê/vê/ouve pode ser considerado real ou verdade absoluta. Para a nutricionista, essa relação entre o “corpo saudável” e a saúde não é verdadeiro. “Pela experiência do consultório, posso dizer que a maioria das pessoas buscam a aparência apenas, fazendo o que for preciso, independente da saúde. Os pacientes pedem dietas restritivas como as da moça do instagram, querem metas que as deixem com o fisico do carinha do face. Ninguém chega querendo fazer as pazes com a comida e ter uma alimentação equilibrada.”
Assim como todos os outros julgamentos e pressões sofridos e exercidos pelas mulheres e pela sociedade, a “moda do corpo saudável” não é diferente. Os organismos são bastante complexos e individuais tornando-se muito difícil manter um padrão. Não é tão simples para todas as mulheres ter esse compromisso com o “saudável” por diversos motivos. Esse não deixa de ser um tipo de pressão social, por mais que a justificativa seja a saúde ou o bem-estar. Para Mirela, esse estilo de vida não condiz com a realidade da maioria das mulheres. “Existe um investimento de tempo, dinheiro e dedicação que nem todas possuem. É vendido um padrão como se ele fosse super fácil de alcançar, e não é. Eu acho que antes o culto ao corpo era uma contra-cultura, era cultura só de alguns, depois parece que virou cultura. A contra-cultura virou não malhar. Parece que o mundo todo está dentro das academias e quem está fora está cometendo um pecado.”
De uns tempos para cá, movimentos feministas e femininos vêm tentando mudar a realidade em relação às regras sobre o padrão de beleza ideal. Porém não é algo tão simples assim de se resolver e algumas barreiras são praticamente intransponíveis.
Apesar da pressão sofrida ser conhecida e rejeitada por muitas mulheres, elas ainda desejam adequar-se ao padrão, pois não vêem outra opção. Mesmo sabendo que poderiam ser felizes sem se submeter a certas coisas, muitas vêem seus empregos ou relacionamentos dependendo da manutenção desse ideal de beleza. Muitas outras ainda vivem presas à uma realidade na qual associam esse padrão à felicidade, sem nem ter conhecimento dessa pressão existente. E muitas outras deixaram as obrigatoriedades com o “corpo ideal” de lado e vivem como se sentem bem, independente das referências imagéticas. Para a antropóloga, essa ideia de libertação da pressão social é um discurso bonito mas aplicável apenas em partes. “O padrão não é obrigatório. Só que a calça 38 é minúscula. Pelo menos na época que eu fiz a pesquisa, eu não sentia que era tão optativo. Eu sentia que era uma “ética da beleza” não um “poder de ser bela”.
Um dos vários problemas é quando esses padrões se tornam tão rígidos numa sociedade, num grupo social, num ambiente de trabalho ou dentro da cabeça da mulher, que acaba afetando sua saúde e o relacionamento com os outros. Não são poucos os casos de mulheres com distúrbios alimentares ou psicológicos por conta de sua aparência e sua auto-aceitação.
Um exemplo é a questão das comissárias de bordo. Por mais que as empresas aéreas justifiquem suas exigências por conta do operacional no avião — por exemplo uma altura mínima para que se consiga alcançar os compartimentos de bagagem, o assunto gera polêmica. “Houve um ocorrido há alguns anos no qual a empresa aérea exigiu que as suas funcionárias passassem a vestir manequim 42 pois os uniformes só seriam confeccionados até esse número e deu três meses de prazo para as mulheres se adequarem. Na época, as anfetaminas ainda estavam liberadas e, pra não perder o emprego, muita gente se submeteu a situações extremas.”
Em busca de refrear a obssessão pelo padrão corporal, países como a Espanha, Chile, Israel e, desde esse ano, França, criaram leis que regulamentam a contratação de modelos consideradas excessivamente magras pelas agências. O nível de magreza é mensurado através do IMC (Índice de Massa Corpórea) da modelo, que é calculado dividindo-se o peso pelo valor da altura ao quadrado.
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde) o valor de 18 para o IMC é limítrofe para um organismo saudável. Na França, agências que contratarem modelos com IMC abaixo de 18 podem ter seus responsáveis presos por até seis meses e serem obrigadas a pagar multas de até 75 mil euros. Muitas modelos com IMCs inferiores ao limite contestam a lei francesa, alegando serem naturalmente magras. Porém, os problemas de saúde pública que esse exemplo traz à sociedade são muito graves. “Na época que eu estava fazendo a tese saiu uma matéria que na Argentina foi feita uma campanha para que as lojas padronizassem o tamanho das roupas e colocassem as medidas na parede da loja, porque mulheres com 38 kg, que são anoréxicas, estavam sendo encaminhadas para lojas de obesas porque nem o G servia”, conta Mirela.
Com a onda fitness isso só se agrava, além de dietas malucas ou distúrbios alimentares, as mulheres ainda desenvolvem uma obssessão por exercícios físicos e intervenções estéticas. Especialista em distúrbios alimentares, Fernanda já foi testemunha de diversos casos extremos. “Tive paciente que fazia exercícios 18h por dia, ia desde limpar a casa diariamente até sessões intermináveis de abdominais. Na parte alimentar tem de tudo, desde só consumir refrigerante diet ou pó de café num dia inteiro como casos um pouco mais graves com a paciente se mutilando por ter comido algum doce. Algumas pessoas simplesmente não sabem que têm transtorno alimentar; ainda mais hoje em dia que ser escravo da alimentação “perfeita” é algo admirado e seguido por muitos.”
A grande questão é: a mulher poderia e deveria ter o corpo que quiser e ser feliz com isso. Porém diversos fatores como o molde das roupas, ou a discriminação no trabalho, ou o poder aquisitivo pra fazer uma academia ainda são obstáculos pra essa “liberdade”.
Ao longo do tempo, apesar de se mudar o ideal de beleza, a pressão continua constante. Para a antropóloga, não existe uma tendência de diminuição. “Hoje em dia, a pressão está maior pra tudo. Você tem muitos modos de veicular e de cobrar com a Internet. Todas as sociedades sempre tiveram um padrão de beleza, mas essa cobrança que temos hoje, que explodiu na década de 80 nos EUA e na década de 90 no Brasil, nunca foi tão intensa. Não vejo a pressão diminuindo. Pra que haja talvez alguma mudança, acho que os meios de comunicação de massa deveriam veicular mais essa coisa da pluralidade.”
Quer ser magérrima? Tudo bem, se você está feliz assim, mas faça tudo com acompanhamento médico.
Sempre sonhou em ter seios grandes? Sem problemas, pra isso que existe o silicone!
É muito alta? E qual é o problema com isso?
Não quer mais se depilar? Você só deve se depilar se quiser, ok?
O importante é ter conhecimento do grande leque de possibilidades. Ainda não é tão simples se libertar dos padrões, há pouquíssimo tempo começou-se a dar importância pra essas questões do corpo feminino, da imagem, da pressão, mas a passos de formiguinha as coisas podem melhorar.
Originally published at www.siteladom.com.br on August 15, 2015.