Renascendo das Cinzas mostra os abusos vividos por Evan Rachel Wood

Graci Paciência
Lado M

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Nós temos o péssimo costume de acreditar que somente mulheres muito vulneráveis e com poucos recursos sofrem violência doméstica e mantêm um relacionamento abusivo. Ainda nos permitimos, em pleno ano de 2022, acreditar que nunca vai acontecer conosco, muito menos com mulheres empoderadas, talentosas, bem-sucedidas e famosas. Phoenix Rising: Renascendo das Cinzas, documentário em duas partes disponível na plataforma de streaming HBO Max, expõe o nosso equívoco e traz a atriz norte-americana Evan Rachel Wood verbalizando os abusos que sofreu quando se relacionava com o cantor Brian Warner, mais conhecido pelo seu nome artístico, Marilyn Manson.

Evan trabalha desde pequena. Estreou como atriz aos sete anos, em 1994, no telefilme Sangue Amargo, de Jeff Bleckner. Atuou no clipe Wake me up When September Ends, do Green Day, ao lado do então namorado Jamie Bell (Billy Elliot), e em grandes produções, como Across the Universe e Tudo Pelo Poder. Em 2004, aos 16 anos, concorreu ao Globo de Ouro por Aos Treze, drama que mostra o relacionamento entre mãe e filha sendo destruído depois que a garota se envolve com drogas, sexo e criminalidade.

Desde 2016, é a protagonista da série do canal HBO Westworld. A atriz tem uma beleza dentro dos padrões: é magra, loira, tem olhos azuis e, enquanto adolescente, exalava uma rebeldia atraente e desconcertante. Parecia que Evan tinha o mundo aos seus pés e, talvez, tivesse mesmo. Mas tantos fatores ao seu favor não garantem, necessariamente, segurança, sucesso e felicidade.

Desde muito jovem, Evan foi exposta aos malefícios da indústria do cinema. Enquanto filmava Aos Treze, por exemplo, beijava em cena um homem de 23 anos, situação que faria qualquer pessoa normalizar um relacionamento com uma diferença de idade considerável, mas o agravante disso é que Evan era menor, ela tinha apenas 14 anos.

Poucos anos depois, Evan conheceu Marilyn Manson. Ele já era famoso, seu álbum de estreia, Portrait of an American Family, foi lançado em 1994, mesmo ano em que Evan estreou como atriz. Sua carreira tinha relevância na indústria fonográfica e ele ganhou maior notoriedade depois do caso Columbine, quando o perfil traçado dos criminosos mostrou que eles ouviam a música do cantor. Manson sempre teve uma imagem e postura controversas. De acordo com ele, Antichrist Superstar, seu segundo disco, lançado em 1996, tinha a proposta de derrubar as bases do Cristianismo. Seu visual gótico e sempre carregado de maquiagem chama atenção e as mensagens de suas músicas abraçavam adolescentes excluídos.

Phoenix Rising: Renascendo das Cinzas começa com Evan vendo fotos da época do namoro e comentando o quão jovem ela era. Ao longo do documentário, a atriz, alguns familiares e amigos comentam como era a relação com ela enquanto o relacionamento se consolidava.

Quando o namoro começou, Evan tinha 18 anos e Manson, 37. No primeiro momento, eles se tornaram amigos, o que o permitiu conhecer detalhes da vida da atriz: o relacionamento com a família e com o namorado viraram alvo de comentários e geraram conselhos dele. Um dia, sem que Evan esperasse, Manson a beijou. Pouco tempo depois, eles assumiram o relacionamento e a atriz levou a fama de destruidora de lares, pois, até então, ele era casado com a modelo Dita Von Teese, famosa pelo seu visual burlesco.

Fica evidente que Manson, aos poucos, diminui todas as relações de Evan e passa a ter um discurso que, entre linhas, dizia que somente ele se preocupava com ela e a amava. Sua manipulação fez da então namorada uma pessoa dependente emocionalmente.

Enquanto namoravam, Manson lançou o disco Eat Me, Drink Me, em 2007, e Evan foi a protagonista do clipe da música Heart-Shapped Glasses. A atriz conta que o que era para ser a encenação de uma relação sexual se tornou um estupro quando Manson penetrou a então namorada sem autorização. Como se não bastasse, o ato foi divulgado e Evan encarou isso como um momento romântico do casal. Infelizmente, esse clipe continua disponível no YouTube.

Ainda houve uma turnê do cantor em que ela o acompanhou. Foram 8 meses fora do seu mundo e totalmente mergulhada no universo dele, vulnerável e influenciada pelo comportamento abusivo de Manson.

Mesmo depois desse período e de outros momentos de apoio a carreira de Marilyn Manson, o seu trabalho como atriz era pouco reconhecido por ele, que não dava importância às conquistas da então companheira.

Em 4 anos de relacionamento, Evan Rachel Wood passa por diversas situações de abuso e violência, incluindo estupro enquanto dormia, privação de sono, cárcere privado e choques. Sim, choques.

“Eu estava tão assustada e triste. Acredito no direito da opção da mulher, mas não significa que não foi devastador”, Evan sobre a postura do ex-namorado após a interrupção da gravidez.

Evan relata que Manson não se dispunha a utilizar nenhum método contraceptivo e, após a namorada passar por um aborto, o cantor minimiza a situação e pede o jantar. Nesta época, ela passou a considerar o suicídio e chegou a tentar se matar.

Ela é de família judia e, certo dia, acordou e viu que no quarto do casal havia um desenho feito pelo então namorado com uma mensagem antissemita. Evan comenta que, em certo momento, comentou a se questionar sobre a postura dele, que publicamente despreza figuras fascistas, mas que o deboche passa a configurar devoção.

Levou anos para que a atriz conseguisse sair do relacionamento definitivamente, mas sair de um relacionamento abusivo não significa que isso acabou. Há consequências muito pesadas e fica evidente que, mesmo mais de dez anos depois, Evan não superou a violência que sofreu. Ela foi torturada física e psicologicamente durante anos por alguém que havia dito que a amava. Saiu com vida, mas todos os dias pessoas ao redor do mundo sucumbem ao comportamento de pessoas como Marilyn Manson.

A atriz demorou anos para denunciar porque não se sai de um relacionamento abusivo disposta a revivê-lo ou até a falar sobre ele. Quem consegue sair quer viver, quer (re)descobrir o mundo e a sua própria vida sem o fantasma do abusador. Outras ex-namoradas também denunciaram Marilyn Manson, e Evan Rachel Wood virou uma ativista e foi fundamental na aprovação da Lei Phoenix, na Califórnia (EUA), que permite a denúncia de abusos até 5 anos após o ocorrido. Antes, esse limite era de 3 anos.

É sempre bom ter em mente que nenhum relacionamento começa com o abusador mostrando quem realmente é. A situação é construída aos poucos. Depois de conquistar a futura vítima, o abusador passa a revelar, dia após dia, o comportamento violento que carrega.

Phoenix Rising: Renascendo das Cinzas é dividido em dois episódios que, juntos, têm 2h35 de duração. O documentário dirigido por Amy Berg (indicada ao Oscar em 2007 com o documentário Deliver Us From Evil, sobre Oliver Grady, sacerdote da Califórnia que molestava filhos dos paroquianos) estreou mundialmente no Festival de Sundance, em janeiro de 2022, e no canal HBO em março do mesmo ano. Está disponível na plataforma HBO Max.

Se você está em situação de violência, busque ajuda discando 180. Mais informações aqui.

Você pode assinar a petição on-line para que o clipe de Heart-Shaped Glasses seja retirado do YouTube clicando aqui.

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Graci Paciência
Lado M
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Gosto terror e rock. Autora de "Confissões de uma Adolescente Grávida" e host do podcast Soul do Rock. Twitter: @gratona_ https://medium.com/@cronicasdagraci