Revenge Porn: o que é e o que fazer quando vazam seus nudes

Mariana Miranda
Lado M

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Todos os nomes presentes nessa matéria foram alterados para preservar a identidade das vítimas.

Que atire a primeira pedra quem nunca quis se sentir desejada por alguém, seja uma pessoa conhecida há tempos ou apenas um futuro alvo em potencial.

O avanço da tecnologia tornou as conversas entre casais mais frequentes, bem como a vontade de excitar e provocar aquele do outro lado da tela. E é aí que as mensagens tornam-se mais picantes, mais envolventes e a vontade de arrematar toda aquele jogo de sedução em uma só foto, aumenta. A câmera do celular foca uma parte desnuda do corpo, a pedidos ou não daquele que espera ansioso pelo seu “digitando…”, gerando uma foto a ser enviada, seguida da espera ansiosa pela resposta que comprova que ele ou ela não poderia estar mais louco de desejo por você.

Das 500 mulheres entrevistadas pelo Lado M, 355 (71%) afirmam já ter enviado “nudes”, fotos com teor íntimo e/ou sexual, enquanto 145 (29%) dizem nunca as terem enviado. Entre as justificativas mais recorrentes para não enviar estão o medo de que outras pessoas tenham acesso às imagens ou de que elas sejam publicadas em algum lugar.

Esse medo é extremamente compreensível, já que alguns parceiros e ex-parceiros utilizam essas imagens íntimas como forma de chantagem, tornando a mulher em questão refém psicologicamente. O ato de enviar um conteúdo íntimo, seja foto ou vídeo, sem o consentimento da pessoa que aparece nele é chamado de “pornô de vingança” (revenge porn), quando existe um teor vingativo e pessoal no envio, ou “compartilhamento de conteúdo íntimo não autorizado”, quando quem o envia não necessariamente tem o desejo de se vingar da vítima.

Quando acaba a confiança

Carla* tinha 14 anos quando um vídeo íntimo seu foi publicado na internet. Aconteceu em 2013, quando ela estava saindo com um cara de 17 que, em uma festa na casa de um amigo, não parava de embebedá-la. Os dois foram procurar um quarto vazio e ele fazia questão de que fossem para um em particular. Dois dias depois, uma amiga dele marcou Carla em um vídeo: era a transa inteira do casal, realizada naquele quarto em que o cara tanto queria que eles entrassem.

“Muita gente parou de falar comigo, inclusive meus pais. Fui xingada infinitas vezes de puta”

No vídeo, aparecia tanto Carla quanto seu ficante, mas toda a atenção se focou na garota.

“O engraçado é que ninguém, absolutamente ninguém citou o nome dele. Nem para falar ‘que babaca’. Ninguém fez isso, todos focaram em mim. Para onde eu ia tinha algum cara que ficava me assediando, achando que eu faria sexo assim, sem mais nem menos”

Arielle Sagrillo Scarpati é psicóloga, mestre em psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo e doutoranda em Psicologia Forense pela University of Kent. Para ela, o fato de que homens e mulheres são tratados de maneira diferente quando têm imagens íntimas divulgadas se dá, dentre outros fatores — como por exemplo, papeis de gênero — por conta de diferentes noções de honra preestabelecidas para cada grupo na sociedade:

“A honra masculina está atrelada ao trabalho e à proteção da família, já a feminina está muito atrelada à sexualidade, ao que ‘não fazer’. A sexualidade feminina é aquela que ainda está ligada, infelizmente, à questão da pureza, da maternidade, do ambiente doméstico”

Por isso, em situações como essa, as pessoas tendem a culpar mais a mulher do que o homem, já que é ela que, através do seu comportamento, está colocando em “risco” sua honra.

Depois de uma semana ignorando-o, Carla foi até a casa dele. “Ele ficou me beijando, abraçando, falando que estava com saudades e tentando me acalmar dizendo ‘meu, esses vídeos param de ser comentados em menos de um mês. Você está sendo muito dramática”’, conta. Depois de muita discussão, Carla resolveu ir embora quando o ex pegou seu braço e apertou muito forte.

“Até hoje sinto uma dor de leve onde ele apertou. E ele achava que estava certo, sabe? Que tinha todo o direito de me machucar ou de dizer que eu não tinha motivo para fazer ‘esse drama todo’”

O pornô de vingança nada mais é do que uma outra maneira de violentar e oprimir mulheres. Com toda a situação, Carla se sentiu muito isolada e acabou perdendo vários amigos. Hoje ela já refez seu ciclo de amizades, porém ainda sente medo: “ele é da minha escola e fica me perseguindo as vezes. Eu já me acostumei, mas tento não chamar muita atenção”.

Chantagem e pedofilia

Joana* tinha por volta de 14 anos quando conheceu um cara 7 anos mais velho que a envenenou psicologicamente das piores formas possíveis. Ela o tinha visto pessoalmente apenas duas vezes, mas conversavam frequentemente por MSN e Orkut. Durante três anos, Joana ficou “presa” a ele e refém de seus desejos.

“Quando ele soube que me tinha nas mãos, começou a pedir fotos e vídeos, e eu fazia da forma que ele queria. Ele me manipulava de várias formas: quando eu não enviava o que pedia, parava de falar comigo ou ficava me tratando de forma seca para eu me sentir mal. Depois que eu fazia suas vontade, me tratava como uma princesa, dizia até que me amava, planejava um futuro comigo”

Ele era tão tóxico que Joana decidiu finalmente cortar contato e o excluiu das redes sociais. Ela pensou que estava livre, mas dois anos depois o inferno voltou. “Ele reaparece dando uma de bom moço, pediu perdão por tudo o que tinha feito e eu novamente acreditei. Só que dessa vez eu estava namorando sério e não ia ceder as suas investidas, então larguei ele pra lá”, conta Joana.

Quando era duas horas da manhã, seu namorado a liga perguntando sobre esse mesmo cara. “Eu estava super assustada, travei e não consegui responder. Eu já imaginava o que vinha por aí”, conta. Suas suspeitas estavam certas: o pedófilo tinha conseguido o e-mail do namorado de Joana e enviou pedaços de conversas deles de anos atrás, bem como as fotos íntimas que ela havia enviado.

“E foi assim: sem ameaças ou brigas. Ele simplesmente resolveu mandar e o fez”, conta.

A partir disso, o terror instalou-se na mente de Joana.

“Até medo de ir para a faculdade eu tinha. Não queria sair da frente do computador por medo de acabar vendo minhas fotos por aí. Tinha medo de ouvir meu celular tocar e ser algum conhecido falando que tinha visto minhas fotos”

Mesmo depois do susto, o namorado de Joana deu todo o apoio possível à ela. “Ele ficou em choque, porque eu nunca tinha contado que já havia mandado fotos para algum cara, ainda mais quando eu tinha 14 anos. Mesmo assim em momento nenhum ele me julgou ou me ofendeu, o que geralmente a gente espera. Ficou do meu lado, tentou rastrear o cara, mas não deu certo. Ele me deu muita força pra sair da bad, muita mesmo. Eu só tive ele pra compartilhar essa situação, sempre tive medo de contar pra amigas e ser julgada ou acabar chegando no ouvido dos meus pais”, conta Joana.

E quando quem vaza os nudes é outra mulher?

Das 355 mulheres que já enviaram nudes entrevistadas pelo Lado M, 18 foram vítimas de pornô de vingança. Quando perguntadas sobre quem havia vazados as imagens na época, seis responderam que foram ficantes e quatro que foram os namorados ou namoradas.

Mas e quando quem envia as imagens é justamente uma mulher? Foi exatamente essa a situação pela qual Fabiana* passou. Em 2012, ela estudava em uma faculdade particular quando foi vítima de pornô de vingança.

Depois de vencer a bulimia, Fabiana enviou uma foto nua do pescoço até a cintura, junto com um texto onde ela contava sua história pessoal, para um site que tratava dessas questões. As imagens não tinham nenhum teor sexual. Ela estava muito animada no dia quando percebeu que por algum motivo não fazia mais parte do grupo do Facebook da sala.

“Me contaram que, em uma aula que eu não fazia, uma galera começou a se agrupar em frente ao computador para dar risadinhas e fazer comentários”

Quando a adicionaram novamente no grupo da sala, ela descobriu que uma menina havia feito uma montagem e colado seu rosto na foto em que havia enviado para o site.

“Ela me adicionou ao grupo de novo como se nada tivesse acontecido. Mas no dia seguinte minhas amigas vieram me falar o óbvio: essa foto tinha viralizado e já estava no grupo de putaria da bateria da faculdade. Todos do Diretório Acadêmico e do Centro Acadêmico já tinha visto a foto e me olhavam no corredor com risadinhas”

Depois dessa exposição, o assédio ultrapassou os muros da faculdade e foi para as redes sociais.

“Vários caras me acharam no Facebook e me mandaram mensagens nojentas, propondo coisas obscenas, me xingando de várias coisas e me ameaçando dizendo que iam ‘me pegar de jeito’ em festas da faculdade”

Fabiana ficou tão nervosa que não conseguiu tirar satisfação com a menina que havia feito a montagem.

“Ela é mulher, ela sabe o que acontece com quem tem foto vazada. Morri de vontade de bater nela, mas minha amigas me levaram pra longe e deram uma dura na menina, que disse que tinha se arrependido e que ‘já tinha tirado a foto’. Só que foto na internet nunca some totalmente, né”

Para Arielle, mulheres reproduzem esses discursos e acabam passando a diante esse tipo de conteúdo principalmente por dois motivos: ou porque não entendem a lógica machista e violenta por trás disso, ou por tentar “se defender”, como um mecanismo de defesa psicológica mesmo.

“Numa tentativa de se protegerem, muitas mulheres ‘dividem’ a categoria feminina em duas: aquelas que são ‘honradas’, ‘corretas’, ‘mulheres de verdade’ e ‘de respeito’ e aquelas que são o oposto disso. Com essa lógica fica mais ‘fácil’ explicar o que houve. No sentido de que quando eu xingo e digo que ela mereceu, eu estou tentando atribuir sentido à violência ocorrida e afastar a sensação de risco de mim. Ao colocar essa mulher em outra categoria, estou na verdade tentando me proteger — psicologicamente — de algum dia estar no lugar dela”, explica.

O que fazer nessa situação?

Quando um laço de confiança é quebrado, o estrago costuma ser grande. Independente de conhecer a pessoa há muito ou pouco tempo, quando se envia uma foto ou vídeo íntimo para alguém, a ideia é que essa pessoa vai manter essa imagem consigo. Infelizmente, alguns agem por pura má fé e as divulgam, até porque têm a plena consciência de que a sociedade vai crucificar a mulher exposta, ou seja, a vítima de toda a situação, e não o agressor.

Se isso aconteceu com você, a primeira coisa a fazer é não se culpar. Por mais que seja difícil, coloque na sua cabeça que você tem todo o direito de fazer o que bem entender com o seu corpo e a única pessoa que fez algo de errado foi aquela que vazou suas imagens sem o seu consentimento.

Não é crime enviar nudes, mas é crime sim vazá-los. Conversamos com Gisele Truzzi, advogada especialista em Direito Digital e proprietária de Truzzi Advogados, que nos contou quais medidas devem ser tomadas quando a vítima está sendo ameaçada de ter seus nudes vazados ou que já esteja passando por essa situação:

– Primeiramente, é recomendável não responder à qualquer tipo de ofensa.

– Não deletar as mensagens, publicações ou e-mails ameaçadores recebidos, pois esta será a principal prova do crime de ameaça. É essencial que a vítima mantenha os arquivos originais recebidos.

– Tirar prints de tela de todo o conteúdo recebido ou divulgado e armazenar, mencionando data, horário e link onde aquele material poderá ser encontrado. Caso o conteúdo seja restrito, enviado através de mensagens privadas, grupos fechados ou aplicativos de conversação, é importante tirar prints do perfil do usuário na rede social ou app, mencionando o link respectivo do perfil do agressor, ou de modo que apareça o no de seu telefone — caso a ameaça ocorra via whatsapp, por exemplo.

– Armazenar essa prova eletrônica, como prints e arquivos originais dos e-mails, em uma mídia (CD, pendrive, etc), imprimir e comparecer à uma Delegacia de Polícia ou Delegacia de Defesa da Mulher (preferencialmente) mais próxima de sua residência ou de seu trabalho, para registrar um Boletim de Ocorrência referente ao crime de ameaça praticado. Na Delegacia, a vítima deverá entregar uma cópia das provas eletrônicas que obteve, impressa ou em mídia.

– Dependendo da gravidade do caso, a vítima poderá preservar essa prova eletrônica registrando uma Ata Notarial em qualquer Cartório de Notas (“Tabelionato de Notas”)

– Procurar um(a) advogado(a) — de preferência, especialista em Direito Digital — para avaliar as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis. Eventualmente, caso o conteúdo tenha sido divulgado na internet, é possível requerer sua remoção através de notificações extrajudiciais. Caso o agressor seja desconhecido, é possível também descobrir sua identidade, através de ação judicial específica. Havendo a comprovação de autoria do agressor, é possível ingressar com ação criminal e ação cível (indenização por danos morais) contra ele.

Pornô de vingança também é violência contra a mulher

Mesmo que já existam providências legais a serem tomadas em caso de pornô de vingança, nem todas as vítimas escolhem esse caminho. Seja por medo de expor a situação às pessoas próximas ou até ao delegado, já que a culpabilização da vítima é extremamente frequente nesses casos, muitas mulheres optam pelo silêncio e pela introspecção.

Quando analisamos a reação das vítimas a esse tipo de violência, precisamos levar em consideração alguns fatores, como sua rede de apoio ou a falta dela, sua autoestima e resiliência, assim como a reação das pessoas no seu entorno. Estão a julgando ou a acolhendo?

“Quando estamos falando de violência — de qualquer tipo — precisamos entender que cada vítima vai reagir de um jeito. De forma geral, algumas delas podem entrar em depressão, desenvolver algum tipo de transtorno alimentar ou de sono, quadros de stress pós traumático ou ansiedade. Isso também pode gerar problemas em relacionamentos futuros, devido a dificuldade em criar vínculos e laços de confiança. Além do sentimento de vergonha, de culpa, de arrependimento”, diz Arielle.

A sociedade em que vivemos ainda cria os homens para o espaço público e as mulheres para o espaço privado. Por isso é que na grande maioria das vezes a mulher — mesmo sendo a vítima da situação — acaba por ser mais recriminada em casos de pornô de vingança, justamente pela quebra da expectativa de que “uma mulher direita deve se preservar”. Enquanto a mulher é vista como promíscua, o homem passa desapercebido na cena, visto com indiferença pelo olhar dos julgadores ou até mesmo como um “garanhão”.

Infelizmente, o pornô de vingança ainda acontece com frequência. É só clicar no botão ‘enviar’ no celular que aquele frio da barriga de ‘será que fiz a coisa certa?’ já sobe. Por mais que cuidados sejam tomados, como por exemplo não mostrar o rosto ou não mostrar um cenário que faça com que as pessoas associem as imagens à você, às vezes o inevitável acontece e as fotos ganham uma visibilidade que não deveriam ganhar. E enquanto a sociedade continuar focando todas as suas críticas nas vítimas e não nos agressores, pouco vai mudar.

É possível ajudar a mudar essa mentalidade começando por nós mesmos: ao receber uma imagem ou vídeo que simplesmente não deveria estar no seu celular, que tal perguntar para a pessoa que a enviou o motivo dela ter feito isso? Que tal explicar para ela que continuar compartilhando esse conteúdo só vai piorar a situação da vítima? Que tal tentar achar o responsável pelo primeiro envio? Colocar a culpa no agressor e parar de julgar a vítima, e fazer com que seus amigos façam o mesmo, já é de uma ajuda enorme e que tem o potencial de, aos poucos, mudar o cenário em que vivemos.

Originally published at www.siteladom.com.br on April 29, 2016.

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Mariana Miranda
Lado M
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Formada em Jornalismo pela ECA-USP e cofundadora do Lado M