Roger Abdelmassih está em casa; Kenarik, a juíza que o condenou, está sob julgamento

Helena Vitorino
Lado M
3 min readAug 3, 2017

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Os adjetivos “ridículo”, “patético” e “absurdo” são insuficientes para representarem a quase inversão de papeis entre Roger Abdelmassih e Kenarik Boujikian. Ele, o ex-médico condenado pelo estupro de mais de cinquenta mulheres, cumpre agora o restante de sua pena em casa, alegando saúde frágil. Ela, a juíza responsável pela condenação do estuprador a 278 anos de prisão, encontra-se sob julgamento pelo TJ-SP. A ironia nesta situação não é fruto do acaso, mas do machismo intrínseco ao judiciário brasileiro, e constitui-se em mais um triunfo da misoginia nas instituições de justiça.

O caso Kenarik Boujikian

O “crime” cometido pela juíza foi de libertar 11 pessoas que se encontravam em situação de cárcere mesmo tendo suas penas vencidas. Exatamente: Kenarik assinou a liberação de réus cujas permanências na cadeia já haviam excedido o tempo fixado em suas penas. Por conta disso, recebeu um processo disciplinar do desembargador Amaro Thomé Filho. O processo foi julgado como procedente, e por mais absurdo que pareça, por maioria de votos, Kenarik teve aplicada uma pena de censura. Ignorou-se que, em 2012, o próprio Conselho Nacional de Justiça já havia se dado conta da situação irregular destas pessoas encarceradas.

Quem é Kenarik Boujikian?

Kenarik Boujikian nasceu na Síria, e veio ao Brasil com três anos de idade. De origem armênia, foi voluntária no presídio do Carandiru, e é co-fundadora e ex-presidente da Associação de Juízes para a Democracia. Pertence à classe de juízes que, antes de condenar alguém ao cárcere, visita a cadeia e conversa com os presos e entende a condição as quais aquelas pessoas estão submetidas. Abdelmassih não foi o primeiro nem o último caso julgado por Kenarik, e em termos de relevância midiática, divide espaço com outro caso famoso: Boujikian foi a responsável por condenar 10 policiais militares que torturaram durante cinco horas ininterruptas o casal Natacha Ribeiro dos Santos e Roberto Carlos dos Santos. A juíza condenou os policiais, mas, depois de doze anos tramitando no TJ-SP, o processo prescreveu e os policiais permanecem soltos.

Kenarik Boujikian é uma especialista em Direitos Humanos e feminismo. Ajudou a fundar o Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas, para dar apoio, voz e conhecimento às mulheres em situação de cárcere. A desigualdade de gênero e machismo não é exclusividade das mulheres que vivem fora das grades, uma vez que a opressão do Estado também se estende àquelas que permanecem presas. Para a juíza, o aumento do aprisionamento feminino (570% nos últimos quinze anos) se deve ao fato de a mulher ter assumido a chefia familiar. Em entrevistas, Kenarik ressalta que o encarceramento da mulher negra é ainda maior, e que 80% das mulheres presas têm filhos.

Kenarik e o caso Roger Abdelmassih

Colocar Abdelmassih na cadeia não foi tarefa fácil. Suas vítimas levaram anos para organizarem suas denúncias e seus traumas. Muito provavelmente ainda há mulheres que sofreram abuso do médico e nunca se manifestaram a respeito. A partir das primeiras denúncias, e do movimento coletivo que foi organizado pelas vítimas para prendê-lo, Abdelmassih já recorreu, ficou foragido, e agora conseguiu o direito de cumprir a pena em casa. Segundo o advogado do ex-médico, a situação dele é calamitosa, pois “já não pode nem mais se barbear ou fazer a higiene íntima sem ajuda”.

Kenarik representa a mulher que ousa trabalhar com a liberdade e competência de seus colegas homens. Por conta de sua postura, está sendo perseguida e juridicamente pressionada. Sua sessão de julgamento, que estava marcada para ontem (01/08) foi adiada pela ministra e presidente do CNJ, Carmen Lúcia. Porém, o caso segue em andamento. E Kenarik, ao lado de todas as outras mulheres que trabalham espremidas pelas estúpidas amarras do machismo e do patriarcado no Judiciário, segue correta, democrática e confiante.

E o que Roger tem a ver com o julgamento sobre Kenarik?

Seria insensato se não considerássemos que a Justiça, predominantemente masculina e misógina, pode muito bem dar mais valor a um ser semelhante (tão Homem e tão Misógino quanto) do que a quem luta para combater o machismo. Quando lembramos de que são constituídas nossas instituições jurídicas, e de tudo aquilo que lemos a respeito, o caso de Kenarik Boujikian soa bem mais familiar a todas nós.

Originally published at www.siteladom.com.br on August 3, 2017.

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