Síndrome de Ross Geller: o cara legal?

Lorena Pimentel
Lado M
Published in
5 min readJun 30, 2015

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Caso você não viva debaixo de uma pedra, deve conhecer dois caras bem importantes na cultura pop: Ross Geller e Ted Mosby. Eles têm algumas similaridades, como por exemplo serem zoados pelos amigos por serem nerds, terem hobbies questionáveis, terem um quê romântico e morarem em Nova York. Ah, e serem completamente babacas.

Sim, você leu isso certo. Eles são completamente babacas. “Mas eles não são os caras legais?” você pergunta. Bom, sim e não. Eles são o típico nice guy (cara legal) da ficção. “E o que há de errado com isso?” você também pergunta. Bom, vamos conversar. Sabe aquele filme 500 dias com ela? Ele é um é um ótimo exemplo de como o arquétipo do ‘nice guy’ funciona. O Tom é aquele cara fofo e gentil que está solteiro e conhece a Summer, uma garota meio excêntrica. Bom, é uma comédia romântica com seus encontros e desencontros típicos, mas o X da questão é que o Tom sente raiva da Summer por terminar com ele em determinada parte do filme. Porque ele é tão legal, como alguém pode não gostar dele? A própria história do filme problematiza em certos momentos o comportamento do Tom:

A evolução desse arquétipo é a popularização do termo ‘friendzone’ (o conceito de uma mulher não retribuir os sentimentos românticos que o amigo tem por ela). As coisas estão ligadas pro princípio. Observe o cenário: o personagem sente atração por uma moça (no caso da friendzone, uma amiga dele). Ela não retribui. O personagem começa a hostilizar a moça, porque afinal ele é um cara muito legal, quem poderia perder a oportunidade de se envolver com ele? É evidente que a moça está sendo propositalmente cruel com esse grande rapaz bacana e cheio de sentimentos. Daí ele se coloca no papel de vítima: as mulheres não ligam pra ele, coitado. Tipo o Ross quando a Rachel começa a sair com o cara italiano lá, lembra dele?

O primeiro exemplo literário que vou colocar aqui é bem óbvio: Jacob Black. O garoto-lobo de Crepúsculo está apaixonado por Bella, mas ela está apaixonada pelo misterioso Edward. Não vou problematizar esse relacionamento porque não é hora, mas vamos considerar que é direito dela escolher ficar com um vampiro brilhante, por menos prático que isso pareça. O Jacob, por outro lado, não aceita essa derrota (bom, até o quarto livro acontecer né) e questiona Bella: por que ela não quer ficar com ele, que é tão amigável e legal?

Gossip Girl, antes de ser uma série maravilhosa com atores insuportavelmente bonitos, era uma série de livros. Apresento-lhes Dan Humphrey, o cara meio hipster-antes-de-hipsters-serem-cool, que ficava escrevendo poesia existencialista em cafés de NY. O cara tem aquele complexo de ser único e especial e, quando garotas perdem o interesse nele, ele age de forma irritante. Ele é a vítima das mulheres fúteis que não lhe dão atenção. Ou pelo menos é isso que ele acha.

Claro que, assim como qualquer arquétipo, nem sempre seu uso significa algo ruim. Há horas em que eles surgem nos livros pra evidenciar o absurdo dessas atitudes, para desconstruir a ideia de que o cara legal é realmente…legal.

Como, por exemplo, nosso caro Bentinho Santiago, de Dom Casmurro. É o cara certinho que duvida da fidelidade de sua esposa, que supõe estar tendo um caso com seu melhor amigo. Ele se coloca como o cara super apaixonado que é vítima de uma traição. E, se sua escola seguiu os clichês de educação, teve um julgamento na sala de Capitu traiu ou não traiu? e alguém deve ter defendido o protagonista porque ele estava loucamente apaixonado pela Capitu. A gente já falou aqui na Pólen de narradores não confiáveis, mas acho que vale frisar que todo o livro é narrado pelo Bentinho do futuro com seus eternos mimimis. Nós a vemos pelos olhos dele e ele tenta nos vender que ela é uma traidora. Ele, coitado, é só a vítima, o cara legal que ela abandonou. Ele é ciumento, possessivo e chato e ainda tenta ser o mocinho da história. Mas né, foi ele quem acabou sozinho em uma casa falando com os quadros e apelidado de Dom Casmurro.

Vou cometer uma heresia literária e falar que um personagem que se mostra nice guy é o Darcy. Antes que surja uma multidão com tochas na minha casa, deixa eu explicar: a Jane Austen desconstrói esse traço dele durante a narrativa perfeitamente. Ele começa como um típico babaca elitista (eu sei, eu sei, pode me odiar depois dessa) e ainda espera que Elizabeth se apaixone por ele. Migo, assim não tem como te defender.

Eis que ele percebe que as coisas não são assim e começa a se esforçar pra ser uma pessoa decente de verdade com a Lizzy. É interessante pensar em Orgulho e Preconceito e como a Jane foi avançada para sua época. A Lizzy deveria aceitar qualquer cara que se interessasse por ela, já que mulheres deveriam ser submissas. Mas ela espera o cara começar a respeitá-la para dar uma chance a ele.

O grande problema dos nice guys da ficção é que eles (e muitos autores, roteiristas, diretores…) acreditam que são o centro do universo e as mulheres da história sempre acabam funcionando como um plot device, uma ferramenta útil na hora de movimentar a história do Grande Homem™ que o cara legal está prestes a se tornar. O mais incômodo, no entanto, é quando o cara legal sai do seu livro e da sua tela, tomando a mente de homens que acreditam piamente que sim, eles são apenas muito bacanas e poxa, por que essa mulher não existe e age exatamente do jeito que eu quero, hein?

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Originally published at www.siteladom.com.br on June 30, 2015.

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Lorena Pimentel
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