“Sabonete de Mecânico” era o meu apelido na escola

Helena Vitorino
Lado M
11 min readJan 11, 2017

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A primeira vez que confrontei o racismo foi aos dez anos de idade. Maria, A Sabonete de Mecânico, era meu apelido na terceira série. A ambiguidade cruel vinha em dois personagens: os que me hostilizavam, e os que me silenciavam. Aos dez anos de idade me disseram, pela primeira vez, a não bradar contra o racismo. Quem me disse isso foi o diretor do colégio, quando fui protestar contra uma agressão que havia sofrido. Treze anos após este episódio, resolvi confrontar esse “conselho” dado em tão tenra idade, que impactou em minha vida. E por incrível que pareça, obtive uma resposta.

Caro C., boa noite.

Sou ex-aluna do colégio, estudei no João Paulo durante minha infância, dos 10 aos 13 anos, e hoje, aos vinte e três, tenho recordações fortes deste período. Gostaria de falar com você justamente a respeito. Mantive contato com poucos colegas e alguns professores. No entanto, apesar de não termos mantido contato, seu nome nunca me escapou: Diretor C.. Explico o motivo.

O colégio recebe diversas crianças semestralmente. No meu caso, fui matriculada na terceira série, aos nove anos de idade. A escola pareceu aos meus pais, novos no bairro, a melhor opção à época e eu me recordo das visitas prévias que fizemos à escola, bem orientadas pelos instrutores. Meus anos no João Paulo foram bons. Fiz amigos, tirei boas notas, realizei passeios, até chorei pra sair. No entanto, algumas coisas me ocorreram que na época não pude compreender. Faltava-me a vivência para perceber certas peculiaridades do que eu vivi e que percebia nitidamente que não ocorriam com meus colegas, apenas comigo.

Creio que não fui a primeira aluna negra do colégio. Na minha turma, no entanto, eu era a única. Pelo menos por um tempo, nos anos iniciais, fui a única aluna negra, ou “morena” da minha sala, que tinha em torno de 25 a 30 alunos, se não me engano. Na época eu não sabia o que significava ser uma criança negra num colégio majoritariamente de crianças, professores e funcionários brancos. Hoje, ao me recordar com muita nitidez de certas situações, entendo por que elas nunca saíram da minha mente: porque eu nunca cheguei a esquecê-las. Eventos que viriam a se repetir e que me trariam a “vivência” sobre o que é ser uma aluna / funcionária negra num ambiente em que se é a minoria.

No ano em que entrei, realizamos amigo-chocolate próximo às festas de fim de ano, uma espécie de despedida dos alunos para presentear os colegas. Foi a primeira vez que participei de um amigo-chocolate na vida e estava muito empolgada. Quando a garota que me sorteou iniciou seu discurso de “quem é meu amigo secreto”, a sua primeira reação foi esfregar o dedinho nas costas da mão e dizer “minha amiga secreta é escurinha”. Era eu. Peguei meu presente, agradeci, e não sei dizer se aquilo me incomodou. Mas não esqueci.

No ano seguinte, tivemos na matéria de história uma aula sobre escravidão, e neste dia eu faltei. Porém, enquanto a professora explicava pelo que passavam os escravos no Brasil, uma aluna fez uma piada abertamente sobre mim, e gritou pra sala “A Maria é assim! Ela é preta!”. Mesmo eu não estando presente, não se falou de outra coisa no dia seguinte. Cada um dos meus amigos veio me contar isso, e nem eu e nem eles sabíamos direito o que aquilo significava, mas tínhamos uma impressão cada vez mais forte de que aquilo era errado. O tom era pejorativo. Foi quando eu procurei a diretoria e me levaram à sua sala, o que me espantou um pouco na altura de meus 11 anos. Geralmente quem resolvia as pequenas brigas e divergências na nossa turma era a Diretora A., e rondava em torno da figura do ‘Diretor C.’um certo temor do desconhecido. Eu entrei na sua sala e me sentei do outro lado da mesa. Nunca me esqueci da nossa conversa.

Como uma criança que eu era, relatei à minha maneira o que tinham me contado, que inclusive foi confirmado pela aluna que fez o comentário a meu respeito. Com todo aquele medo que qualquer criança sente ao adentrar a sala do diretor, mas convicta de que eu estava fazendo a coisa certa, mesmo sem saber exatamente o quê. Nossa conversa foi bem rápida, e honestamente eu não me lembro de cada detalhe. Mas houve uma fala sua que me fez refletir por dias, e que ainda me faz, hoje muito mais do que antes.

“Olha pra mim. Eu, por exemplo, sou careca. Se algum dia eu estiver andando na rua e for chamado de careca, ou se algum amigo me chamar de careca, por mais que me incomode, é o que eu sou. É quem eu sou e não devo me incomodar. A mesma coisa acontece com você.”

Não era a resposta que eu estava procurando aquele dia, e lembro que saí de lá confusa. Depois disso não houve mais nenhum movimento da diretoria ou dos professores referente ao que eu havia passado. O movimento na sala de aula, no entanto, nunca foi tão intenso. Em partes porque a nossa conversa havia sido inútil — minha colega não levara nenhuma advertência, sequer foi chamada à direção para explicar o ocorrido. E por outro lado, dentro da sala, comecei a ter apelidos, coisa que eu não tinha antes. E adivinhe só qual apelido me botaram: “Preta”.

Em todas as pequenas brigas e discussões após esse episódio, eu fui atacada pela minha cor. A professora de teatro me disse abertamente que eu não poderia interpretar a “gata” dos Saltimbancos porque eu não era “branquinha”. No ano seguinte, entrou um novo aluno na sala que me apelidou de Sabonete de Mecânico, e rapidamente pegou. Em casa, eu não contei aos meus pais que era chamada de Sabonete de Mecânico, e também não procurei mais a diretoria porque estava me questionando se não era realmente aquilo que eu era. Estava me questionando se eu não era “Preta” ou se não era realmente um sabonete de mecânico. Afinal, a sua recomendação foi de que aquilo não deveria me incomodar, porque era o que eu era.

Peço que não interprete essa história como um desabafo póstumo, busca por alguma retratação ou uma terapia tardia. É pura e simplesmente porque isso nunca saiu da minha mente. O João Paulo foi o início da minha vida social e ali eu aprendi que coisas semelhantes me acompanhariam pelo resto da vida, porque infelizmente este é o mundo em que vivemos. Em suma, no João Paulo eu aprendi inconscientemente o que era racismo.

O motivo do meu e-mail é: você se recorda deste episódio? Eu me recordo, e não porque eu tenha feito um esforço para mantê-lo. Eu me recordo porque a sua resposta foi o primeiro retorno impactante que eu receberia sobre o que é lutar por uma coisa que me parecia errado. Evidentemente, eu sei que sou preta. Me vejo todos os dias, desde que nasci, e nunca tive dúvidas da minha cor, como na época você também não tinha dúvidas de que era careca. A questão é que eu estava sendo tratada de uma maneira pejorativa, à vista grossa dos professores, dentro da sala de aula, e a sua recomendação foi de que eu aceitasse. Eu me aceito como uma pessoa negra, porque sou, mas como uma criança de 11 anos deve aceitar um tratamento pejorativo como algo natural e decorrente? Não posso acreditar que não tenha ficado claro, à época, que eu fui ao seu encontro por querer justiça. Para mim, aos 11 anos, estava muito claro de que aquela atitude estava errada. E você me disse para aceita-la.

Foi a primeira, mas não a única vez que recebi esta recomendação. Eu vivi relativamente pouco, tenho apenas 23 anos, mas já ouvi muito esta recomendação nos demais colégios, na faculdade, no ambiente de trabalho, na família. Por algum tempo eu não questionei essa recomendação, mas hoje não consigo mais acreditar que isso venha sendo ensinado para mim. Como um mantra social, “não se incomode” é realmente uma pedrada certeira para quem procura por direitos básicos. Você era careca e já deve ter ouvido piadas, como eu também ouvi. Mas me questiono se essas piadas permearam a sua infância. A sua autoestima, a sua percepção de si próprio, a sua rejeição completa de quem você era, a sua timidez. Hoje me dói muito pensar que eu fui chamada de sabonete de mecânico pelos meninos da minha sala, em frente a vários professores, e não tive forças pra gritar o quanto aquilo era errado. Eu estava num processo de “não me incomodar” com nada daquilo, mas eu não sabia que ainda que “não me incomodasse”, aquilo jamais sairia de mim.

Humilde e sinceramente, hoje, escrevo esse e-mail em reflexão respeitosa à conversa que tivemos. É de extrema importância para mim que você saiba que um dia tivemos essa conversa e o impacto dela sobre mim. A sua recomendação foi o primeiro balde de água gelada que tive em minha vida a respeito de uma situação que se tornaria corriqueira. Quando eu recebi uma recusa de um namoradinho por ser negra, ou quando recebi uma recusa de um programa de auditório por ser negra, quando fui negligenciada em lojas de shopping por ser negra e quando fui confundida com uma babá por ser negra, eu meio que já estava ‘preparada’ pra tudo isso porque anos atrás eu havia recebido uma recomendação. Uma recomendação muito ferina, direta, ambígua e confusa para uma criança de 11 anos. Meus pais me ensinaram que aquilo era errado, mas a sua recomendação não foi lúdica, solidária, e arrisco a dizer que também não foi justa comigo. Comparar o seu exemplo com o meu foi uma tentativa que me pareceu tão insuficiente pra mim, que ainda hoje me é difícil compreender.

Eu não espero nenhum retorno a este e-mail, apenas a compreensão de que me era necessário enviá-lo, como forma talvez tardia, porém não menos válida, da criança com quem você conversou naquele dia se expressar. Retorno hoje para responder-lhe que eu sinto muito se alguém um dia o chamou de careca e isso o magoou, e acredito que se essa pessoa fez isso é porque ela não tem consciência ou maturidade para ver que você é muito mais do que isso. É um profissional dedicado ao trabalho e à sua família, dedicado até aos ex-alunos que escrevem desabafos cansativos, longos e maçantes, e se algum dia alguém reduzir tudo que você é a este apelido infeliz, eu o recomendo a levantar-se e não se deixar ser tratado dessa forma, pois isso não é certo. Você não é O Careca, você é C.O., e eu não sou a “preta” ou um sabonete de mecânico, eu sou Helena Vitorino e tenho um enorme futuro pela frente, como você.

Meus sinceros agradecimentos pela leitura,

Um grande abraço

Helena Vitorino.

A resposta do diretor veio em menos tempo do que eu imaginava: cerca de 24 horas depois do meu e-mail.

Helena,

Acabei de ler seu e-mail e não consegui fazer mais nada. Fiquei incomodado. Só penso nas suas palavras, na explanação de suas experiências e, principalmente no relato da nossa conversa. Por isso preciso lhe dizer algumas coisas. Lembro vagamente da situação, porém não lembro totalmente das palavras que foram utilizadas. Talvez tenha me faltado um pouco de habilidade ao me expressar, ou até ter usado um exemplo errado, para que você entendesse a importância das coisas e o que eu estava querendo mostrar.

Meu pensamento é de ajudar sempre. O mundo tem varias religiões, várias culturas, várias raças, vários biótipos de pessoas, e como lidar com isso? Como ajudar as crianças, nossos alunos, a entender e respeitar a diversidade das coisas sem que se sinta maior ou menor? Melhor ou pior? Mais ou menos importante… Ser católico ou muçulmano, gordo ou magro, feio ou bonito, branco ou negro, vermelho ou amarelo, rico ou pobre, ser cego, paraplégico?

Acredito na simplicidade das coisas, de que somos o que somos e devemos nos orgulhar disso, sempre. Independente de qualquer situação. Quando sabemos do nosso valor e o que representamos enquanto ser humano, enquanto pessoa, para nossa família e para a sociedade em que vivemos, nada pode atingir nossa moral e consciência, nossos valores e princípios. Percebo isso na sua escrita e redação.

Assim procurei educar meus filhos, prepará-los para a dificuldade de viver dia-a-dia.

Minha forma de atuar e trabalhar leva junto esses preceitos, os quais procuro passar a todos ao meu redor e principalmente aos professores e alunos. Esse foi meu objetivo, que você entendesse que ninguém, por mais que falem ou façam, pode tirar o que é seu. Sua consciência, seu conhecimento, seus valores e suas convicções. Não achava que tinha de aceitar a situação, pelo contrário: só queria mostrar que as provocações não eram relevantes para alguém que sabe o seu valor, pois esses fatos iriam se repetir mais vezes durante a vida.

Parabéns por sua redação.

Obrigado por ter me escrito e fazer refletir sobre minhas ações.

Sucesso nos estudos e trabalho.

Um forte abraço

C.

A resposta do diretor C. foi delicada e sensível, e não tenho dúvidas de que tenha sido honesta. Acredito realmente que o uso do exemplo não tenha sido a fim de diminuir a minha reclamação, porém não foi eficaz em mostrar para mim e para quem estava me agredindo sobre a real situação que estávamos vivendo. Uma situação de racismo sempre terá no mínimo dois atores: um que sofre e o que pratica. Enquanto o foco de atuação for apenas à vítima do racismo, dizendo que ela não deve “se incomodar”, e não no ofensor, dizendo que ele não deve ofender, não haverá uma correção completa do problema. No melhor dos casos, contribuiremos para a formação de jovens duros e resistentes ao racismo, e outros jovens despreocupados em agredir os demais pela cor.

Não, não basta me dizer que eu sou melhor que as ofensas. Não sou eu a única que deve saber disso: quem me agride deve saber que não pode, em hipótese alguma, voltar a fazer isso. Eu fui à sala do diretor com o propósito de denunciar uma ofensa, mas sai de lá com o conselho de que aquilo não me abalasse, e em dois dias toda a escola já estava me chamando de “neguinha”.

Os defensores do racismo estão muito preocupados em garantir que os negros ofendidos não se “vitimizem”, mas a preocupação não é a mesma com aqueles que ofenderam. O conselho do Diretor C. só me fez perceber que o ambiente escolar só repete cada vez mais do mesmo que é a sociedade: não se faça de vítima.

Acontece que eu fui vítima de racismo, e não tenho vergonha nenhuma em dizer isso. Sim, eu fui uma vítima, e não sou eu quem deve lidar com isso, não sou eu que devo trabalhar internamente para ser alguém melhor, não sou eu que devo criar uma super-armadura e deixar que nada me atinja, nada me abale. Eu só tenho que ser uma criança normal, e crianças normais se abalam, choram, desconfiam. Dizer a uma criança que aja com a força de um adulto nessas horas é uma tamanha crueldade, porque o erro ali não foi meu; no entanto, foi minha responsabilidade de emenda-lo.

Se você trabalha com crianças, se você convive com crianças, tenha essa preocupação e sensibilidade: você está apontando os erros nos personagens corretos?

Originally published at www.siteladom.com.br on January 11, 2017.

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