Eu sou assexual e não há problema nenhum nisso

Laís Ribeiro
Lado M
4 min readJun 30, 2018

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“De quem você gosta?”

Essa é a frase que define o fim e o começo de muitas coisas. Quando seu amiguinho te pergunta isso, você pode dizer adeus à infância, adeus às amizades que vem fáceis e por trás das quais você não precisa se perguntar se há segundas intenções. É um olá ao mundo das paixonites e crushs, dos casaizinhos de colégio e da separação ilógica entre meninos e meninas (porque agora você não pode mais ter amizade com alguém do sexo oposto: vão falar que estão namorando e você vai m-o-r-r-e-r de vergonha).

É também o início de uma longa etapa de auto-descobrimento, uma introdução muitas vezes forçada, pela mídia, à sexualidade. Vemos a representação da sexualidade em toda parte: no remate da piada de um comercial, no enredo principal de um filme, na história secundária da novela, na forma de um “beijo de amor verdadeiro” nos contos de fada. Ela está lá, algumas vezes associada à luxúria, outras acoplada aos sentimentos românticos entre duas pessoas que possuem um relacionamento afetivo.

Não é à toa que a comunidade homossexual reclama sobre sua representação na mídia, e com todo o direito. Como pode o amor estar reservado apenas para aqueles que praticam o “beijo hétero”? Bom, eu tenho uma outra pergunta: como pode o amor estar reservado apenas para aqueles que praticam o ato de beijar (e outras coisas mais)? Melhor ainda: por que a televisão mostra o prazer de fazer sexo sem amor, mas não mostra o amor sem o prazer de fazer sexo? Será que a última opção não é possível? Seria o ser humano, em toda a sua complexidade, incapaz de sustentar um relacionamento sem sexo por vontade própria?

E é aí que entram os dragões. Como você deve saber, dragões são criaturas mitológicas, supostamente inexistentes no mundo real e confinados à nossa imaginação. Por isso, nós, os assexuais, praticamente invisíveis ao mundo e amplamente ignorados junto aos pansexuais em relação ao resto do espectro, adotamos essa criatura como um de nossos representantes. Agora me diz: quantas vezes na vida você ouviu falar em dragões? E em assexuais?

Imagine, então, o que uma jovem pré-adolescente que nunca escutou essa palavra vive no seu dia-a-dia. Sim, umA jovem, pois o mundo das meninas passa a respirar sexualidade. Sua identificação com personagens da sua idade muda drasticamente, pois ela já não é criança e a imagem da mulher em todos os formatos de mídia é sexualizada. As colegas falam em garotos, em primeiro beijo, BV e namorados, guiadas pelas revistas de adolescentes. Para algumas amigas, acontecem as primeiras experiências de contato físico íntimo, e a jovem, que não sente atração ao pensar nesse tipo de contato, se pergunta “quando essa vontade vai chegar para mim? Estou esperando o quê?”.

Ora, como explicar a essa menina que ela simplesmente não terá vontade de fazer isso? Ainda assim, ela vai experimentar por si mesma, vai beijar alguém pela primeira vez. E não vai gostar. Mas as amigas avisaram que poderia ser assim, certo? Então ela passa para o segundo, terceiro, quarto. Nada. Por mais que ela goste da pessoa, não há prazer ali, só um contato incômodo e desconfortável. Seria o problema com ela? Ela veio com algum defeito? Quem saberia explicar a ela o que ela sentia? A informação meramente não existia para ela, estava fora de alcance.

É claro, a Internet mudou tudo. Sim, estamos cansados de ouvir que, nos últimos anos, a Internet revolucionou a troca de informações entre pessoas, mas é um fato. Foi graças a ela que os homossexuais e as feministas multiplicaram a efetividade de seus protestos enormemente e conquistaram a maior parte de seu apoio. A “cyberluta” foi e é uma grande aliada da conscientização das pessoas, a forma pela qual a informação pode ser disseminada rapidamente e para um grande número de pessoas de uma só vez. Não é diferente para nós, dragões.

Foi no Tumblr que li a palavra “assexual” pela primeira vez. Ah, o Tumblr: famoso “refúgio das minorias”, onde os adolescentes encontram seus iguais e ganham voz entre si, de uma forma que nunca teriam conseguido na escola. Certamente, a plataforma tem seus defeitos — afinal, o site é apenas uma concentração de jovens inexperientes e ávidos por finalmente sentir o acolhimento de pertencer a um grupo, compartilhando suas experiências pessoais e ouvindo as de seus companheiros.

Mas, com o reduzido número de estudos profissionais sobre a assexualidade e o desprezo encontrado em pesquisas sobre o assunto (lê-se: escala Kinsey, que, após ignorar nossa existência, denominou os assexuais como grupo “X”), a visibilidade alcançada com essas histórias puramente subjetivas é uma grande aliada da conscientização e educação sobre a assexualidade. Quando um membro de uma minoria fala, aqueles que se identificam escutam e contribuem com sua parte para que o discurso aumente e se espalhe por outras redes sociais.

Qual é o discurso? É bem óbvio, na verdade: a assexualidade é válida. Seja em sua forma pura ou na sua área cinza (gray asexuality), a assexualidade não deve ser algo a temer ou ser alvo de deboche. E você, allossexual (termo usado para designar todos que sentem algum tipo de atração sexual, ou seja, não-assexuais), aceite-nos e respeite nosso estilo de vida, é tudo que pedimos. A assexualidade é só mais um tipo de orientação sexual, ou seja, não escolhemos ser assim. Mas cara, você já viu um dragão? Quem não iria querer ser um?

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