Sobre as mulheres expulsas do Éden: Lilith e Eva

Lado M
Lado M
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6 min readSep 26, 2015

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Existem duas grandes figuras femininas da mitologia hebraica que teriam trazido consigo toda a desgraça do mundo porque não quiseram se subjugar ao poder masculino: Lilith e Eva. Ambas negaram as determinações expressas de Deus e por isso sofreram graves consequências, tão duras que perduraram para todas as suas gerações seguintes: a morte de seus rebentos.

Mas antes que alguém me bata porque este assunto envolve religião, é bom deixar bem claro que ele tratará apenas de histórias do povo hebreu e de passagens da Bíblia enquanto mitologia e simbologia, não na validade acerca do que se possa acreditar ser verídico ou não. Tanto é que, se formos analisar o conteúdo simbólico das histórias a seguir, será possível identificar um paralelo entre estes mitos do povo hebreu e o famoso mito grego, a Caixa de Pandora. Neste caso, parecidíssimo com os destinos de Eva e Lilith, Pandora teria a primeira mulher criada por ordens expressas de Zeus. À ela foi dada uma caixa (jarro) que não poderia ser jamais aberta. Porém, não obedecendo a tal premissa, Pandora quis explorar o conteúdo da caixa e acabou liberando todos os males que assolam a humanidade. Somente a esperança continuou lá dentro, e é ela que não devemos jamais deixar ir embora.

Mas deixemos Pandora para outra oportunidade e comecemos por Lilith. De acordo com a obra Mulheres, mitos e deusas — o feminino através dos tempos, de Martha Robles, a história de Lilith teria surgido entre os sumérios, como uma das primeiras concepções da natureza feminina e depois foi “importada” para o judaísmo pós-bíblico como a primeira mulher de Adão.

O mito de Lilith residia na luta entre a igualdade de direitos entre homem e mulher. De acordo com a origem do mito, ela e Adão teriam sido criados a partir do pó por Deus. Desta forma, ambos eram iguais, feitos da mesma terra. Lilith queria poder desfrutar do prazer das relações sexuais ficando por cima, como Adão, mas este negou-lhe o pedido justificando que tal posição era um direito do homem, não da mulher. Lilith alegou que eles eram iguais; disse o nome de Deus (o que não era permitido) e fugiu para o Mar Vermelho, terra de muitos demônios.

Adão, por sua vez, reclamou com o Todo Poderoso acerca da fuga de sua mulher, e Este enviou três anjos para dizer a ela que voltasse com o intuito de agradar a Deus e se contentar com essa frustração quanto à submissão a Adão, sob pena de que, todos os dias, 100 de suas crias morreriam. Lilith se recusou a voltar e, desde então, passou a conceber uma legião de demônios e jurou que mataria os recém-nascidos como vingança, poupando apenas aqueles que tivessem escrito na porta o nome dos três anjos que tentaram falar com ela ou que, ao pé do berço do bebê, houvesse três fitas com os nomes dos referidos enviados de Deus. Só assim os pobres infantos estariam a salvo da ira da renegada Lilith.

Desde então ela é retratada como um ser da noite, sedutora, que atrai os homens a fornicarem ilicitamente. Aquela que se revolta contra os matrimônios e a concepção de bebês provenientes deles. Ela é aquela que foi rejeitada e humilhada, e, por conta disso, redireciona toda sua raiva para os homens e seus filhos, não às mulheres. Ela é a potência sexual que deveria ser oprimida a todo custo com o surgimento de uma sociedade patriarcal. Ela é aquela que deveria se submeter ao poder masculino, principalmente à ideia de que somente os detentores de falos tinham o direito ao prazer sexual. Mas ela não abaixou a cabeça e por isso foi condenada a passar o resto da eternidade esquecida, sendo retratada como aquela que traz o mal por conta de sua personalidade rebelde.

Já o caso de Eva foi diferente. Lilith esteve presente nas lendas do povo hebreu e da cabalística judaica, mas sua história deixou de fazer parte da Bília Cristã. Embora existam algumas menções no Gênesis que possam levar a entender que existia uma antecessora à Eva, na clássica história ela foi aquela cuja história de criação se deu pela remoção de uma costela de Adão e posteriormente experimentou o fruto proibido, levando consigo seu companheiro também ao pecado.

Parece-nos aparente que, neste caso, o próprio surgimento de Eva estava inserido num contexto de submissão, dado que ela não foi criada a partir do mesmo material que seu companheiro, mas sim de uma parte dele. Neste sentido, de acordo com o Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ela poderia representar uma parte da natureza do homem, sendo ela a representação da alma e ele a do espírito. Desta forma, estando a alma subordinada ao espírito, à Eva só restava obedecer a Adão e a Deus.

Entretanto, a semelhante de Lilith também transgrediu à norma deixando-se ser seduzida pela serpente para comer o fruto proibido. A ilicitude de Eva ao comer o fruto da Árvore Proibida não teve nenhum cunho sexual como o de Lilith, mas sim uma reivindicação ao conhecimento o qual poderia ser, por direito, do ser humano.

Por que então se manter na ignorância eterna sendo que o saber estava logo ali?

Assim, Eva não só comeu do fruto como instigou Adão a fazer o mesmo, como se a carne tivesse sido, simbolicamente, mais forte que o espírito, que a razão. Isso acarretou na saída do Jardim do Éden; na perda da imortalidade por eles e seus rebentos (uma morte equivalente às das crias de Lilith que ocorriam diariamente); a origem do sofrimento e do esforço do trabalho; o sangue menstrual e as dores do parto.

Se formos pensar, ser mulher é carregar no corpo o fardo das penalidades que teriam sido “causadas” por Eva apenas e tão somente porque ela queria obter conhecimento, por não ter de fato se submetido às ordens do poder masculino. Neste sentido, com base na obra chamada Nunca se case com uma mulher de pés grandes — A representação da mulher no dito popular, de Mineke Schipper, existem vários provérbios que tratam acerca do risco que o homem poderá enfrentar caso a mulher deseje obter maiores conhecimentos, o que acarretaria na insubordinação dela; questionamentos diversos; forte influência e comentários tão fortes quanto uma flecha atravessada ao peito. Vejamos a seguir:

“Escolhe a inteligente e ela não te deixará dizer um ai” (Russo)
“O sol da manhã, o menino criado com vinho e a mulher que sabe latim raras vezes têm bom fim” (Chinês)
“O homem deve antepor o conhecimento à virtude; a mulher, a virtude ao conhecimento” (Alemão)

Observamos, portanto, que as figuras femininas sofreram com a ira de Deus por não se submeterem a Adão, “o homem mais puro de todos”. De qualquer forma, a transgressão delas traz, além de severas punições, a ideia de que, desde os tempos mais remotos, a mulher buscava sua autonomia, tanto sexual quanto ao direito de conhecimento.

Elas desobedeceram e sofreram sanções. Quantas mulheres já não passaram pelo mesmo tipo de demonização apenas e tão somente porque transgrediram regras de um mundo patriarcalista que não aceita a independência feminina? Uma mulher livre é tida como perigosa, ameaçadora, que não pode ser dominada. No entanto, é apenas e tão somente uma mulher, e não um ser maléfico, como tanto já quiseram difundir.

Originally published at www.siteladom.com.br on September 26, 2015.

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