Sobre frases feministas nas portas de banheiro: feminismo pra quem?

Lado M
Lado M
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3 min readAug 10, 2016

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Era nas portas do banheiro feminino da faculdade que a revolução acontecia para aquelas garotas. A vida toda seguindo regras, a vida toda tendo medos, a vida toda perdendo direitos por ser mulher. Mas ali, nas portas do banheiro de uma faculdade tradicional do estado, elas faziam a revolução.

Dava para notar que, pelas letras bonitas e redondas, essas meninas tiveram estudo. Estudo, caligrafia, canetas coloridas, caderno das princesas com o papel macio e branco. Branco como a maioria dos alunos da já comentada faculdade. Branco como a porta do banheiro sempre ficava durante a noite, após a revolução acontecer durante o dia.

Nunca ninguém viu quem escrevia aqueles recados, mas nunca havia um erro de português. Nem de inglês, porque a revolução era bilíngue. E era sempre durante os intervalos das aulas ou das provas. Magicamente as frases apareciam lá. Havia as mais contidas: “se ame” “você é linda” eram quase que obrigatoriedades da revolução de porta de banheiro. Outras já eram mais agressivas: “a revolução será feminista ou não será” um dia apareceu escrita de forma forte e rápida. Imagino a sensação de se escrever tais palavras na porta do banheiro: a revolução escorria pelos dedos naquela faculdade.

Um dia, resolveram responder uma das frases escrita às pressas na porta do banheiro. “Não escreva na porta” apareceu abaixo de qualquer outra frase, com uma grafia trêmula e nervosa.

Na noite seguinte, com batom vermelho, alguém havia respondido à altura aquela pessoa que estava tentando barrar a revolução: “Mana, junte-se à causa”. Com isso provavelmente ela resolveria os problemas e traria mais uma irmã para a luta feminista. Portas de banheiros são mágicas.

Mas algo muito estranho aconteceu: aparentemente a mulher que havia pedido, com educação e mãos trêmulas, para que não escrevessem nas portas, voltou e novamente, com a mesma letra trêmula escreveu: “sua causa não me ajuda”. Seria esse o início de mais uma briga de portas de banheiro? Alguém precisava explicar para essa amiga o que o feminismo já fez por ela. Precisavam citar livros, indicar sites, filmes e autores. Escrever frases de efeito que abrissem a cabeça dela para o feminismo. E foi isso que a revolução de porta de banheiro fez: um grande texto, cheio de conselhos, ordens e citações sobre o feminismo. Quase uma porta inteira tomada pela revolução. Não haveria saída para aquela irmã tão próxima, que não fosse entender o que o Feminismo já fez por ela.

Na verdade, havia outra saída sim. A de serviço. Que ficou muito mais longe do habitual porque Maria precisou gastar algumas horas a mais no seu expediente para limpar a porta do banheiro. Enquanto limpava aquela letra redonda de quem teve canetas coloridas e caderno de princesas de papel macio e branco, se arrependia de ter pedido para não escreverem na porta do banheiro. Mais ainda: se arrependia de ter desabafado que as frases não a ajudavam, só a deixavam mais tempo no trabalho e mais longe do filho pequeno, em casa. Mas Maria não sabia o que responder para o texto grande com expressões em uma língua desconhecida e nomes de pessoas que ela nunca ouviu falar. E, mesmo se conseguisse, sua letra era a letra de quem não teve muito estudo nem muitas canetas e nem nenhum caderno de princesa de papel macio e branco.

Maria preferiu se calar e limpar os rabiscos como todos os dias. Talvez em algum momento a revolução que acontece nas portas dos banheiros chegasse até a vida dela na periferia. Mas, naquele dia, a revolução era apenas uns rabiscos em uma letra bonita, na porta de um banheiro de uma faculdade tradicional do estado.

Originally published at www.siteladom.com.br on August 10, 2016.

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