Sobre mulheres sagradas e a história da enaltação do sagrado feminino

Odhara Caroline
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6 min readJul 28, 2018

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No começo, era o mistério. O homem não conseguia compreender o mundo em que estava. A natureza seguia uma lógica implacável e à revelia das vontades humanas. Mas, de alguma forma, essa lógica implacável também parecia submeter as mulheres à sua vontade.

A natureza que corre no sangue da mulher

Em um tempo em que se ignorava o papel masculino na reprodução, a figura feminina era louvada pela sua capacidade de dar à vida. Nela, estava espelhada toda a natureza. Em O Segundo Sexo, a sua profunda análise sobre a condição feminina, a filósofa francesa Simone de Beauvoir escreve sobre o assunto na segunda parte do primeiro volume do livro, História. “A natureza na sua totalidade apresenta-se a ele [o homem] como mãe; a terra é mulher, e a mulher é habitada pelas mesmas forças obscuras que habitam a terra”, ela pontua.

No artigo Em nome da Mãe: o arquétipo da Deusa e sua manifestação nos dias atuais, publicado na Revista Ártemis, a pesquisadora Rosalira Oliveira explica:

“O culto do divino é um dos mais antigos que se tem notícia. O primeiro elemento cultuado pelo homem foi a Terra. E a Terra, dizem os mitos, foi gerada por ela mesma. A vida surgia da sua carne rasgada e jorrava das suas profundezas. Era ela que produzia os frutos, os animais, e o próprio homem”.

Em entrevista para o Lado M, Rosalira conta que o culto da figura feminina já existia antes mesmo do surgimento da agricultura, que se deu no neolítico, contudo, este é o período em que se tem mais registros e uma reconstrução da visão do sagrado para o homem é possível. As estátuas das vênus pré-históricas, com seus seios, nádegas e vulvas fartos, são desse período.

“No neolítico, nós percebemos uma ritualização muito maior. Existe a ideia das estações, o mito dramático da natureza, a ideia de morte e de renascimento. A vida começa a se organizar em relação a esses ciclos, que se refletiam no ciclo da mulher. Não é à toa que mês e menstruação tem o mesmo começo. A mulher e a lua são os calendários”.

Simone de Beauvor explica que extraordinário prestígio que a mulher adquiriu nas comunidades agrícolas se deve, essencialmente, à importância que a criança assume numa civilização que assenta no trabalho da terra: “Instalando-se num território, os homens se apropriam dele; a propriedade aparece sob forma coletiva; exige de seus proprietários uma posteridade; a maternidade torna-se uma função sagrada”.

“A mãe é evidentemente necessária ao nascimento do filho. É ela que conserva e nutre o germe em seu seio e é, pois, através dela que no mundo visível a vida do clã se propaga; desempenha assim papel de primordial importância”, ela explica, ainda, que muitas vezes, o filho pertence ao clã da mãe e a herança transmite-se pela linha materna.

Abaixo ao matriarcado

Nada disso, contudo, significa que a mulher tenha tido, em algum momento da história, poder de fato, muito menos corrobora a tese da existência de alguma sociedade matriarcal. Essa tese foi primeiramente apresentada pelo antropólogo suíço J. J. Bachofen no século XIX. “Mas nós nunca encontramos evidências de uma sociedade histórica que tenha sido governada pelas mulheres”, afirma Rosalira. “Uma outra crítica feita à teoria de Bachofen é que ele confundiu matrilinhagem [em que a descendência é definida pela linhagem materna], matrifocalidade [quando a sociedade é focada na mulher] e matrilocalidade [quando, após o casamento, o marido vai morar com a esposa]. Ele deu um passo muito grande”.

Simone de Beauvoir também aponta que a suposta idade de ouro da mulher não passa de um mito. “(…) não existia entre os sexos uma relação de reciprocidade: Terra, Mãe, Deusa, não era ela para o homem um semelhante: era além do reino humano que seu domínio se afirmava (…). A sociedade sempre foi masculina; o poder político sempre esteve na mão dos homens”. Ela cita, ainda, o antropólogo Lévi-Strauss, que afirmou ao fim de seu estudo sobre as sociedades primitivas: “A autoridade pública ou simplesmente social pertence sempre aos homens”

A mulher é arrancada do pedestal

Com a passagem da idade da pedra para a idade do bronze, a mulher é arrancada de seu pedestal — pedestal no qual, vale lembrar, foram os homens que a colocaram e, agora, eram eles que a destituíam do seu antigo poder. Simone de Beauvoir, contudo, acredita que essa desvalorização era uma etapa necessária para o desenvolvimento da humanidade, porque o prestígio da mulher era tirado de sua fraqueza: “nela encarnavam-se os inquietantes mistérios naturais: o homem escapa de seu domínio quando se liberta da natureza”.

Ao transformar o mundo por meio de seu trabalho, a religião da mulher, ligada aos mistérios da natureza, fica para trás. “Isso porque a mulher só era venerada na medida em que o homem se fazia escravo de seus próprios temores, cúmplice da sua própria impotência”, escreve Simone de Beauvoir. “Era no terror e não no amor que ele lhe rendia um culto. Só podia realizar-se começando por destrona-la”.

“Desde a origem da humanidade, o privilégio biológico permitiu aos homens afirmarem-se sozinhos como sujeitos soberanos. Eles nunca abdicaram o privilégio; alienaram parcialmente sua existência na Natureza e na Mulher, mas reconquistaram-na a seguir. Condenada a desempenhar o papel do Outro, a mulher estava também condenada a possuir apenas uma força precária: escrava ou ídolo, nunca é ela que escolhe seu destino. “Os homens fazem os deuses; as mulheres adoram-nos”, diz Frazer. São eles que decidem se as divindades supremas devem ser femininas ou masculinas. O lugar da mulher na sociedade sempre é estabelecido por eles. Em nenhuma época ela impôs sua própria lei”, argumenta de Beauvoir.

No artigo Em Nome da Mãe…, Rosalira relaciona essa mudança de valores na velha Europa com as invasões indoeuropéias. “Esses povos nômades trouxeram consigo uma ordem social dominada pelos homens e por deuses masculinos que se reflete no panorama político e religioso”, ela explica. A pesquisadora esclarece, ainda que, mesmo com a consolidação do domínio dos invasores, os dois sistemas culturais continuaram mais ou menos fundidos. Isso se reflete, por exemplo, no panteão grego, povoado por deuses e deusas.

Contudo, essa fusão não foi pacífica e a sua luta se encontra em quase todas as mitologias europeias. Na mitologia grega, a mais difundida no mundo ocidental, Gaia, a Deusa Terra surgida espontaneamente do Caos, mãe dos titãs e avó de Zeus, viu seu último filho, a serpente Tifon, ser derrotada pele deus dos raios. Essa luta, de acordo com Jamake Highwater, citado por Rosalira, é o protótipo do princípio masculino, a ordem, com o feminino, a desordem, o caos.

A Virgem sobe aos céus

“Na última cena do quarto livro das Brumas de Avalon, Morgana chega à porta de uma Igreja Católica e vê a imagem da Virgem. É assim que ela entende que a sobrevivência é possível”, Rosalira faz o paralelo com o livro para explicar como a ideia do sagrado feminino conseguiu sobreviver ao agressivo mundo patriarcal regido pela Igreja Católica.

“Quando o catolicismo chegou ao Império Romano, lá era um verdadeiro supermercado de religiões; havia de tudo lá. Inclusive, um culto muito forte à Ísis, que já tinha transcendido, não era um culto apenas egípcio. Era um culto de fertilidade, de alegria, porque Ísis era a mãe”, explica Rosalira. A pesquisadora fala que os títulos que a Virgem Maria tem hoje eram títulos da deusa egípcia. Traços de Juno também estão presentes na figura católica. “A própria palavra missa vem do culto a Juno”, ela conta. Ninguém sabe o porquê, mas é provável que esse termo tenha vindo da adesão dos escrevos ao catoliscismo“.

“A figura da mãe entra por aí e não consegue ser estirpada. A ideia de Maria vai crescendo junto com o catolicismo, tanto que em um determinado momento ela não morre, mas é levada aos céus, ela quase reassume uma ideia de divindade”, explica Rosalira.

Contudo, o lado sexual e combativo da mulher, visto em Afrodite e Deméter, por exemplo, foi sendo ocultado dentro das estruturas patriarcais do catolicismo. “A medida que a figura de Iemanjá se aproxima da de Virgem Maria”, exemplifica Rosalira, “vários arquétipos dela vão se afastando. Há sempre essa quebra da totalidade feminina”.

A volta do sagrado feminino

O retorno da ideia do sagrado feminino vem ao encontro das ideias ambientalistas e feministas que entraram em voga no século passado. A concepção espiritual de hoje não é mais suficiente para as questões levantadas pelo mundo moderno. A humanidade necessita de mais do que uma deusa-mãe. “Esse figurino é muito estreito”, explica Rosalira. “A tradição patriarcal é uma hierarquia, não respeita a terra nem a diversidade. Ela levou a essa ideia de que um deus que é um gerente, um capataz”.

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Odhara Caroline
Lado M
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