Sobre o Autoritarismo Brasileiro é um tapa na cara sobre nossa História
No colégio, eu era uma excelente aluna de História: escutava, anotava, reproduzia nas provas, fazia uma análise dissertativa um pouco menos decoreba em algumas perguntas. Nunca me preocupei muito em questionar a veracidade do fatos, muito menos sobre a unilateralidade dos mesmos. E é exatamente esse tapa na cara que a autora nos dá em Sobre O Autoritarismo Brasileiro: a obra é uma re-análise da nossa história dividida em oito capítulos por temas chave que permeiam nossa sociedade, como corrupção, racismo, desigualdade social e patrimonialismo.
A autora de Sobre O Autoritarismo Brasileiro
Lilia Moritz Schwarcz, paulistana, é professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e doutora em antropologia social pela mesma universidade.
Conversei com amigos que foram seus alunos que a descreveram como uma das mentes mais sóbrias e perspicazes da atualidade. E, depois da leitura, mesmo sem conhecê-la pessoalmente ainda, hei de concordar e procurar outros de seus textos.
A história dos campeões
O primeiro capítulo já é um primeiro tapa: a nossa história ensinada nas escolas foi elaborada da maneira que é por conta de um concurso que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, recém-inaugurado em 1844, lançou na época.
A pergunta era: “como se deve escrever a história do Brasil?”. A causa nobre: após a independência de Portugal, era necessário re-contar patrioticamente e criar um “senso de nação” para os acontecimentos da época no Brasil.
O ganhador foi um naturalista, uma espécie de biólogo da época, com pouco ou nenhuma experiência em ciências históricas. A vitória foi garantida pela tese criada de que o Brasil era uma bonita mistura entre três raças: branca, negra e indígena. E, durante os séculos XIX e XX, diversos escritores se aproveitaram da metáfora em suas obras, como Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala e, de maneira irônica, Mario de Andrade com Macunaíma.
Passado esse primeiro susto, entrei nos textos em si. Não é que o que é contado na aula está errado: os fatos apresentados pela autora são os mesmos, mas a maneira como são esmiuçados e como a costura histórica é feita mudaram a visão escolar que eu tinha.
Por meio de uma análise profunda, porém de leitura leve, a autora de Sobre O Autoritarismo Brasileiro explica como cada tema-título surgiu dentro do contexto brasileiro, a atualidade e uma perspectiva de futuro — quase nunca animadora. Não é necessário ler os capítulos na ordem colocada, mas indico serem lidos por certa ordem cronológica, principalmente nos dois primeiros temas.
Escravidão e Racismo
O capítulo “Escravidão e Racismo”, disseca a formação social brasileira pelo sistema escravagista em que praticamente todo homem livre, inclusive escravos libertos, tinham pelo menos um escravo que perdurou oficialmente até 1888.
A Lei Áurea não previu a integração ou qualquer tipo de auxílio para a população recém liberta e, na mesma época, surgiram as teorias deterministas que dividiam a humanidade em raças. A negra era considerada a mais inferior, sem capacidade intelectual, destinada apenas a trabalhos braçais.
Hoje as teorias deterministas já foram dadas como falsas e a emancipação já tem mais de um século, porém seus efeitos ainda são persistentes na nossa sociedade: as estatísticas brasileiras tem cor. Os negros têm a menor expectativa de vida, e os homens negros entre 15 e 29 anos têm a maior taxa de mortalidade por homicídio.
A novidade é que no Censo de 2009 a população negra cresceu quase 8%, não devido ao aumento da natalidade, mas sim pois mais brasileiros se declararam como negros ou pardos. Tal mudança é fruto do ativismo negro que, desde a década de 1920, persiste em lutar por melhores condições e questionar a estrutura social que temos.
Questões de gênero
Já o capítulo sete trata das questões de gênero — e novamente discute raça. A autora reflete sobre a construção da cultura do estupro no Brasil e vê indícios de seu surgimento já na carta de Pero Vaz de Caminha de 1500, em que o português descreve ao rei a beleza das mulheres indígenas que aqui andavam nuas.
A colonização brasileira foi feita basicamente por homens que deixavam no Velho Mundo suas famílias, ou nem as tinham. A população escrava era majoritariamente masculina e as mulheres indígenas e negras foram designadas a um papel duplo: trabalhar nas agricultura e servir seus proprietários sexualmente.
O medo e o assédio eram uma realidade diária para nossas antepassadas e continuam sendo a nossa. A cultura do estupro envolve não apenas o ato criminoso, mas também a negação, o silêncio e o descaso. Por mais que pareça impossível de ser vencida, precisamos enfrentá-la e usar as ferramentas que temos para denunciar, educar as futuras gerações, re-educar as antigas, nos apoiar e cuidar das nossas irmãs, que hoje somam 88% das vítimas de assédio do país.
A História do Brasil pode não ser aquela que a gente sabia e talvez os próximos fatos não sejam aqueles que esperamos, mas ao termos uma visão mais clara e concisa dos fatos que nos levaram a ter o presente que temos, podemos tentar encontrar saídas para um país um pouco melhor.
Sobre o Autoritarismo Brasileiro foi publicado Companhia das Letras, e já está nas livrarias!