Brasil ainda precisa aprender muito sobre partos naturais e doulas

Natalie Majolo
Lado M
9 min readApr 19, 2016

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Sem intervenções ou medicações, o parto natural acontece de maneira fisiológica, de acordo com a necessidade da mulher e do bebê. Com a devida preparação física e psicológica, pode ocorrer de maneira tranquila e confortável para ambos.

No Brasil, a situação dos procedimentos obstétricos é destoante quanto às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS): enquanto o ideal de cesárias no país seja de até 15%, os brasileiros apresentam o assustador índice de 85%. Aqui, os partos têm sido tratados como um evento médico, e não como um evento fisiológico, natural à vida.

De mãos atadas, as grávidas se perdem sem a devida orientação de como proceder nesse momento tão importante. O parto natural é encarado como uma alternativa, e não como procedimento principal.

Desde o começo deste ano, a mulher tem direito de saber a porcentagem de partos normais e cesáreos do médico obstétrico, assim como o do serviço hospitalar que pretende utilizar. É uma maneira importante para descobrir se o médico e o hospital dão preferência a um ou a outro procedimento. A escolha de um profissional que deixe a mulher tranquila e que esteja ciente de seus desejos é vital para um parto de sucesso. Portanto, caso a mulher deseje ter um parto natural no hospital ou em sua própria casa, o médico precisa estar ciente e à par dessa decisão.

A equipe escolhida para o momento do parto deve conhecer a grávida antes, oferecendo alternativas de alívio à dor e as mínimas intervenções em seu corpo. Desta forma, é interessante a participação de uma profissional que presta suporte físico e emocional durante a gestação, no pré-parto, durante e no pós-parto, é a doula. “Doula”, do grego, significa “aquela que serve”. Ela prestará suporte para tudo o que a grávida desejar, de acordo com as possibilidades.

Esse suporte pode ser realizado por meio de massagens, terapias, conversas. “Importante ressaltar que a doula não faz nenhuma intervenção médica e técnica, ela é um apoio físico e emocional na hora do parto”, completa Indianara Passador, obstetriz em formação e doula.

Coletivo Buriti — Beatriz Takata

O Brasil na contramão

A presença da doula no pré parto e no parto trazem benefícios emocionais e psicológicos para a mãe a para o bebê, conforme estudo realizado em 1993 por Klaus e Kennel. Aumento no sucesso da amamentação, interação satisfatória entre a mãe e o bebê, satisfação com a experiência do parto, redução da incidência da depressão pós parto, e diminuição nos estados de ansiedade e baixa auto estima são apenas alguns dos benefícios.

Além disso, foi realizado um estudo em 2013 pela Organização Cochrane que apresentou os seguintes resultados globais da presença da doula durante o trabalho de parto:

Das 15.288 mulheres que fizeram parte do estudo, 66% delas classificaram suas experiências de parto como positivas; 69% não usaram ocitocina sintética para acelerar o trabalho de parto. Não só, fora isso, 23% sentiram-se menos propensas a ter cesárias e 9% menos propensas a usar qualquer medicação para a dor.

O que se têm visto no Brasil é a desumanização do parto, tornando-o algo apenas técnico, o que barateia o procedimento — o médico da mulher não precisa, em caso de emergência, sair de casa às pressas para realizar o parto: a cesárea está marcada, nada foge dos planos institucionais, como hora extra.

Em todo o mundo, o trabalho da doula é aceito durante o parto. Entretanto, em março o trabalho dessas profissionais no hospital foi impedido no Estado do Rio de Janeiro, além de proibir o médico de realizar o procedimento em situação domiciliar. Enquanto o Brasil anda na contramão quanto às medidas estatais de apoio à mulher, parte do mundo segue outro caminho: o Serviço Nacional de Saúde Britânico (NHS), que funciona como o SUS brasileiro, oferecerá até 2019 £3.000 para mulheres com gravidez de baixo risco que decidirem ter o parto em casa ou em centros de parteiras. O dinheiro é voltado para financiar os gastos do próprio parto e da equipe. O órgão afirma que ter um parto em casa ou em centros é tão seguro quanto no ambiente hospitalar.

Justamente após tomar conhecimento desse cenário de intervenções desnecessárias no Brasil é que Indianara se viu indignada. “Eu quis lutar contra isso”. Realizou, então, o curso para se tornar doula, uma forma que encontrou para ajudar as mulheres. O curso é dado em quatro dias e abrange fisiologia e anatomia do parto, cenário da obstetrícia no Brasil, o trabalho da doula, técnicas de relaxamento e evidências científicas.

Uma prática ainda diferente no Brasil

Indianara já acompanhou duas mulheres como doula; uma delas, a Gabriela Barbosa, que naquele momento tinha seu segundo parto natural. No primeiro, não se sentiu a vontade para ter o acompanhamento de uma doula. Já na segunda gravidez foi diferente. “Eu sabia que ia precisar de um apoio psicológico além do meu marido, alguém com o olhar específico e que não estivesse envolvido emocionalmente. Alguém para ajudar com meu filho, para me dar a mão, para fazer pintura de barriga, para conversar”, diz Gabriela. No decorrer das atividades do pré-parto, ela foi descobrindo o que queria para o próprio parto e para o nascimento da filha.

Para Gabriela, o parto normal sempre foi natural para ela. “Estudando, eu descobri que é o menos arriscado mesmo, mas que na nossa realidade atual não era tão natural assim”. Diversas intervenções desnecessárias podem ser realizadas na mãe e no bebê durante o parto, o que acelera o nascimento. Exemplo disso é o uso de ocitocina sintética no momento do nascimento. O hormônio é o mesmo da menstruação, “expulsa” o que temos dentro de nós mesmas (pois é, daqui que vem a maldita cólica!). A ocitocina está presente de forma natural, mas com a aplicação da sintética, o parto é forçado. Por ter conhecimento dessas exposições e por ter uma gravidez de risco habitual, Gabriela decidiu ter sua filha em casa.

“As doulas são novas em nossa cultura de parto e nascimento, e são muitas decisões e barreiras que a maioria das mulheres que optam por um parto natural precisam quebrar, tanto no seio familiar quanto na sociedade como um todo, incluindo equipe médica/hospital”, diz Gabriela. Para escolher sua doula, Gabriela pesou muito no vínculo. “Queria ter afinidade e vínculo com a mulher que me apoiaria neste momento”.

Indianara afirma que enquanto foi doula de Gabriela, trocavam muitas palavras e sentimentos e até hoje o vínculo se mantém. “Estar presente no parto da Gabriela foi uma das experiências mais maravilhosas e intensas que eu já vivi na minha vida. (…) A gente renasce junto com o nascimento. É uma profissão incrível”, diz de forma apaixonada.

Pra quem se interessou, confira abaixo o depoimento parcial de Gabriela sobre seu parto:

Gestar parir nascer

O parto da Isa me fez entrar em contato com muitas coisas. Nada anestesiado, nada conduzido, tudo ali, real e intenso, naturalmente franco, em todos os aspectos. E foi difícil, incrível, avassalador e maravilhoso.

(…)

Ao conhecer meu priminho recém-nascido pedi pra ele chamar a Isa pra esse mundo e foi nesta madrugada que senti a primeira contração.

(…)

Segui, seguimos, das 2h15 às 16h, foi quando quis chamar minha doula, depois veio a fotógrafa e depois as parteiras. Eram umas 20h, pedi o toque e tava com 7cm, quase 8. Um sentimento de alívio, ao mesmo tempo já cansada. Minha mãe, que tinha dado uma volta com o Gael, filhote mais velho, já tava de volta também.

Usava o rebozo, pra me pendurar, gemia, sentia frio, calor, queria as pessoas e ao mesmo tempo não queria. Comecei a desconfiar de mim. Me sentia frágil, a cada contração era como se eu estivesse me quebrando inteira, e como era difícil pra mim admitir isso… tava difícil.

Coletivo Buriti — Beatriz Takata

Tava certo? Precisava de aprovação. Toda equipe me dava a mão mas em alguns momentos não me era suficiente. Eu pedia forças, do chão e dos céus, fechava os olhos, não queria ver, não queria ouvir. Ao mesmo tempo conseguia falar e dar coordenadas. Mas eu queria me anular, eu queria sumir. Tinha medo de errar, errar comigo, com meu processo, com o parto.

(…)

Logo eu, estudante de Obstetrícia, fã da Naolí, trabalhada “n’a mulher sabe parir”, entendendo todas, todas, todas as que pediam analgesia, todas que pediam cesárea! Logo eu, desconfiando de mim. Como eu conseguia, não sei, mas eu conseguia me julgar, em plena partolândia.

(…)

Quis dormir, queria esquecer, queria acabar com tudo, não era bom, não queria mais parir. Não queria mais minha doula, não sabia o que queria, se queria ir pra banheira, se queria ouvir Somebody to Love, não sabia, não sabia se queria ou não fazer força, se aquilo era puxo ou o que era. Queria dormir. A Nath [parteira] disse que o colo já estava quase todo aberto, era só fazer força que nascia, mas eu tava fazendo toda a força do mundo e como era difícil!!!!! Fiz muita força, muuuuita! Dormia de pé nos pequenos intervalos com o Rô [marido] me segurando por trás. Tava sem lugar, sem chão.

Daí veio minha vontade de fazer coco. Fui pro banheiro a Nath fez um toque. Em seguida a bolsa estourou, tinha mecônio [primeiro coco do bebê]. A Nath me olhou nos olhos e disse: “Gabi, agora eu preciso que ela nasça”. Colocaram a banqueta, e ela já estava lá! Já dava pra ver os cabelinhos! Eu olhei pelo espelho e me espantei. Lembrei que estava parindo, lembrei que ela ia nascer. Mais uma contração, fiz toda a força do mundo, gritando “nãaaao paaaraaaaa!!!” achei que tudo fosse explodir e explodiu de uma vez, cabeça, ombros, pernas, tudo! 2h03 ela nasceu! Peguei minha pequena das mãos da Nath. É inesquecível o corpinho quente e molhado, o cabelinho cheio de sangue, escorregadio, o cheiro forte. Ela chorou e como eu queria ouvir esse choro! Segurei, abracei, amei. Tudo amor.

Coletivo Buriti — Beatriz Takata

Eu tava sangrando muito, então me deitaram. Aplicaram uma injeção de ocitocina, o que foi tenso pra mim, porque continuei sentindo muitas contrações. No fim o sangramento era de um vazo rompido com a laceração. A sutura me incomodou demais, não pelo pela agulha, mas mais porque eu estava sensível, a flor da pele, e sem poder me mexer. Queria fechar as pernas. Queria silêncio. A Isa no meu colo tentou mamar mas eu não estava me sentindo bem. As contrações incomodaram até a placenta sair. Eu queria dormir e ficar em paz. Ainda estava aberta, pulsando, frágil, exausta, e com uma maravilha, agora do lado de fora.

(…)

Tive uma rede de apoio pós-parto essencial. O Rô me deu tanto amor, tanto carinho. O tempo todo ao meu lado, o tempo todo me acolhendo. Minha mãe, cuidando de tudo na casa, nos alimentando bem, deixando tudo em ordem como eu gosto. E minha doula, Índia, que respeitou o meu momento de falar e quando eu pedi foi me ver. Escuto, com os ouvidos, com a alma, com paciência. Escutou minhas frustrações, e silenciou comigo. Trouxe amor, e um presente lindo, uma caixa que guarda lembranças desse parto. Me conheceu intensa e ao avesso e hoje é uma grande amiga. Minha equipe, Nath, que sem vínculo anterior, se abriu pra me ouvir, me ajudando infinitamente, e Vivi mãe, que esteve também sempre ao lado, dando a mão sempre, vocês duas me ajudaram demais! Também, e como, Bia que registrou tudo, deu um abraço infinitamente aconchegante no tp e era minha referência de útero ali! Haha, mulher, nós parimos!

E eu fui mais além, mais fundo pra dentro de mim. Não foi fácil, mas me senti privilegiada de viver esse momento. Quis voltar no tempo, quis que a Isa voltasse pra minha barriga, quis voltar pra banheira. Mas fui aprendendo a reconhecer e validar a minha experiência, meus instintos, a minha força, a minha superação, a nossa história. Com 42 semanas minha filha nasceu, linda, pronta, vermelha, descascando, sorrindo. Ela sorri todos os dias como que me dizendo “está tudo bem, e estou feliz de estar aqui”. A realidade é profunda, reveladora.

Continuando a ambiguidade, como disse a pediatra “você vê, Gabi, que coisas maravilhosas podemos fazer, mesmo estando frágeis?!” Pois é. Mas ora, que fragilidade é essa, senão uma fortaleza?!“

Coletivo Buriti — Beatriz Takata

Originally published at www.siteladom.com.br on April 19, 2016.

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