Por Amara Moira
“Você vai ser homem, homão do tipo mais machista, porque tem pênis” ou “vai ser é mulher, submissa e recatada como toda boa mulher, já que tem vagina”: bastou nascer e já te encaixam num desses modelos, e ai de você se não se sentir à vontade ou quiser dar uma espiadinha do outro lado. A simples curiosidade pode ser fatal (menino querendo brincar de boneca, que absurdo, ou menina jogar futebol, já pensou?) e isso leva, inclusive, a criança a aprender que precisa se fiscalizar o tempo todo pra não sofrer violência, assim como fiscalizar as outras também, muitas vezes de maneira cruel. A vida precária a que têm direito pessoas trans tem relação direta com tudo isso, com a gente tendo que optar desde muito cedo entre caber à força numa vida que não é a nossa ou, então, aguentar as pancadas por não conseguir caber nessa porcaria de vida.
A princípio, pode até ser quer os adultos achem divertida essa criança fora do padrão e aí fazem graça, argumentam, alegam mil motivos pra tentar fazê-la mudar de ideia, geralmente com algo do tipo: “filhão, não dá pra você ser menina, olha o seu pipi” ou “filhinha, que história é essa de ser menino? Você tem pepeca, lembra?”. Mas logo sorrisos e explicações começam a dar lugar à impaciência, à desconfiança em relação aos rumos dessa criança, e aí falas ríspidas, humilhações, ameaças, chantagens emocionais, até chegarem a vez do desprezo, do abandono, da violência física, quando não sexual (o estupro corretivo do “vou te ensinar a ser mulher!”, tão comum na história de homens trans, assim como o punitivo, “quer ser mulherzinha, então aguenta!”, que atravessa a vida de tantas mulheres trans), culminando por fim na expulsão de casa, na exclusão social.
Como é que você descobre que aquilo que sente não é mentira? A criança se sente mulher, mas é tanta gente martelando na sua cabeça o contrário que ela começa a duvidar de si. Pode ser que passe a vida acreditando que é coisa de sua cabeça, loucura, sem se dar ao direito de pensar numa existência em outros termos, se violentando pra caber naquele modelo absurdo que lhe impuseram. Pode ser que ela até tente mudar, mas receba tanta violência em resposta que não dê conta. Nem dá pra imaginar as consequências disso pra nossa saúde mental. Conseguem ver semelhanças disso com o gaslighting que mulheres sofrem dentro de relações abusivas? Pois é, tentam nos enlouquecer dia após dia, eis a vida a que temos direito.
Mulheres trans são bombardeadas desde criança com a ideia de que não podem ser a mulher que são porque têm pênis; homens trans com a de que jamais poderão ser homens porque têm vagina… Uma vida inteira ouvindo que nosso genital é o culpado por não podermos ser quem somos.
Qual a dificuldade em entender que essa aversão que desenvolvemos em relação a ele foi construída socialmente? Qual a dificuldade em entender a razão das tantas pessoas trans que só vão se sentir bem com seu corpo quando passarem por uma cirurgia de redesignação sexual, a famosa “mudança de sexo”?
Originally published at www.siteladom.com.br on May 18, 2016.