Star Wars, cultura pop e o início das mudanças nas representações femininas

Sayuri
Lado M
Published in
7 min readFeb 29, 2016

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Texto escrito em parceria com Maria Rita Mazzucatto.

Que atire a primeira pedra quem nunca ouviu falar de Star Wars. A franquia de ópera espacial do famoso cineasta George Lucas teve seu início em 1977 e, desde então, se tornou um sucesso e um ícone da cultura pop. Por conta disso, por que não olhar mais de perto para os papéis das mulheres nesse universo?

O autor Cole Bowman contribuiu para o livro Star Wars e a Filosofia (publicado originalmente como The Ultimate Star Wars and Philosophy) com um capítulo chamado Pregnant Padmé and Slave Leia, em que discute os papéis femininos na trilogia original e no prequel* da franquia.

Ele problematiza a construção dos papéis femininos nessas obras a partir das duas protagonistas apresentadas até então: a princesa Leia e a senadora Padmé. Infelizmente, ele chega à conclusão de que elas não representam as mulheres. Neste texto, vamos te contar o porquê disso, falar um pouco sobre o novo filme da franquia, o Episódio 7 — O Despertar da Força, e também sobre as mulheres na cultura pop. Se curtiu a ideia, vamos lá!

Leia e Padmé

Na trilogia original (1977, 1980 e 1983), a senadora e princesa Leia é a personagem que “representa” o feminino. É ela quem lidera a Aliança Rebelde contra o tirano Império Galáctico e seu “alto oficial”, Darth Vader. Tudo parece estar tudo bem quando dizemos isso, né? Apesar disso, ao longo da trilogia vemos que, na verdade, ela não nos representa.

Isso ocorre porque Leia, além de ser nobre e rica, o que exclui grande parte das mulheres, não consegue se desvencilhar das autoridades masculinas, sendo submetida a estereótipos e é obrigada a vestir um biquíni dourado quando fica aprisionada. Ainda que não perca o seu papel de protagonista, ela perde legitimação, sendo lembrada como sex symbol e não como líder da rebelião, que é seu maior feito.

Esse biquíni dourado fez tanto sucesso que se tornou uma referência na cultura pop, principalmente por sua conotação sexual. E por que isso é uma questão problemática? Porque Leia foi obrigada a vestir esse traje ao se tornar escrava de Jabba e isso não pode ser visto com naturalidade.

O modo como o traje disseminou-se no imaginário popular é comprovado por sua reprodutibilidade incansável, ainda que a cena em que Leia é submetida a esta situação degradante seja rápida, principalmente se levarmos em conta que a personagem aparece vestida com outros diversos figurinos durante os três longos capítulos da trilogia. Em um tabuleiro de xadrez que contém os personagens da série, imaginem com qual traje a princesa aparece? Sim, com o biquíni.

Já a rainha e senadora Padmé não se sai muito melhor. Ela é sim forte. Luta contra o Império, de rainha passa a ser senadora e não esconde sua crítica aos posicionamentos autoritários vistos durante a trama. Por vezes, arrisca a vida para lutar contra isso. Mas ela acaba sendo anulada, ao ver-se impotente perante a mudança de comportamento de seu marido e é pouco lembrada por seus ideais e bravura.

Embora Leia e Padmé sejam muito importantes, elas não conseguem abarcar toda a pluralidade das mulheres. E é aí onde as duas trilogias pecam: elas tentam condensar nestas personagens todas as representações femininas. E aí não dá, né?

Nesse sentido, Cole Bowman ainda faz uma importante observação: Padmé é a única mulher com falas em todo o Episódio III**! Sim, isso tudo é muito revoltante, ainda que a gente curta muito Star Wars! Mas, nem tudo está perdido, já que estamos falando do que rolou antes lançamento do novo filme da saga, o Episódio 7 — O Despertar da Força. Nele certamente temos mudanças — e também continuações — em relação às representações sociais, principalmente a partir do papel de Rey.

Rey e a (provável) mudança do paradigma na cultura pop

Nesse novo episódio como um todo, vemos diferenças em relação ao que foi feito anteriormente. Porque, além de Rey ser corajosa, carismática, não sensualizada e sem nenhum par romântico (até o momento), tudo indica que ela será a nova jedi. Como não imaginar meninas brincando com sabres de luz? Com certeza é uma ótima chance de mostrar que elas podem ser tudo o que quiserem: usar salto como a Barbie e também lutar como a Rey.

A partir disso, podemos discutir como se dão as representações femininas não somente em Star Wars, mas sim — e principalmente — nos artigos da cultura pop como um todo. Entendemos por cultura pop filmes, livros, games, séries, peças de teatro, entre outros artigos culturais, com grande alcance de público. Não estamos aqui especificando os gêneros, entre ficção científica e romance, por exemplo. Estamos falando da indústria de entretenimento de massa, com seus grandes estúdios e sucessos de público.

Muito falou-se sobre o novo episódio da franquia, principalmente sob a ótica das novas representações femininas que fogem aos lugares-comuns. E nós concordamos que isso é uma questão importante para o feminismo. Nós temos sim que falar de coisa séria, de problemas, de violência, mas não devemos deixar de lado a base de tudo: a identidade das meninas e mulheres, construída ao longo de suas vidas. Ter uma heroína como Rey, que se veste como quer, capaz de resolver os próprios problemas, salvar a própria pele e ainda ser respeitada entre todos da trama como chave para a resolução dos conflitos em uma das franquias mais rentáveis da história do cinema, é sim muito importante! Como falar de mulheres empoderadas para estas meninas, sem elas conhecerem figuras assim? Claro que há outras fontes para isso, como filmes independentes, literatura, entre outros, mas obviamente a cultura pop possui muito mais alcance e consegue, com isso, impactar muito mais gente. E não podemos ignorar este fato.

As mudanças originadas com o episódio atingiram, inclusive, os atores e atrizes por trás da câmeras. Carrie Fisher, a atriz que vive Leia, sentiu-se à vontade para depois de tantos anos manifestar-se contra o uso do famigerado biquíni dourado. Ela alertou para a protagonista do novo filme, Daisy Ridley: “Não seja uma escrava como eu fui. […] Continue lutando contra o traje de escrava”. Não podemos esquecer também da inclusão de um protagonista negro, Finn. Sim, viva aos grupos sócio-acêntricos***!

Apesar disso, claro que essa movimentação tão importante não viria desacompanhada de reações indesejadas, como uma outra polêmica da franquia, desta vez envolvendo a falta da presença de Rey entre os artigos relacionados ao filme, como brinquedos e games. E o que é ainda pior: sua ausência teria sido motivada por instruções de executivos da própria Lucasfilm!

Anacronismos como este revoltam, mas não devem desencorajar as iniciativas dessa indústria que, na contramão dos gostos e ideologias de seu principal público-alvo, os homens, vem mostrando interesse em retratar a mulher de uma outra forma. Então, embora ainda esteja engatinhando a participação de meninas no universo de ficções científicas, histórias de heróis, entre outros campos sagrados dos clubes do Bolinha ao redor do mundo, podemos esperar boas novidades pela frente.

A Marvel, por exemplo, trouxe uma significativa modificação no personagem Thor nos quadrinhos desde outubro de 2014. E, após muito suspense, revelou a identidade da heroína: uma médica que luta contra o câncer de mama. Surpreendente, né? Não podemos nos esquecer da Vespa, também da Marvel, que teve a sua aparição no filme do Homem-Formiga (2015) e promete ser bem feminista (pelo o que já podemos ver, tem bastante potencial!) e será interpretada pela Evangeline Lilly (a Kate de Lost).

Além disso, talvez a super-heroína mais conhecida desses universos está sendo retratada no esperado filme da Mulher-Maravilha (previsto para 2017), da D.C. Comics, e aparecerá também em Batman vs. Superman, que será lançado agora em março.

Outro exemplo mais sutil talvez seja a mudança de representação da Penny, da série de TV da Warner, The Big Bang Theory, ao longo das nove temporadas. Se antes ela era retratada como uma mulher sexy, fútil e pouco instruída, no decorrer do sitcom ela ganha espaço para mostrar seus talentos, adquirindo uma desenvoltura perante os conflitos inexistente entre os personagens ditos nerds.

Por falar em nerds, não podemos deixar de citar como esse mundo é contraditório e frustrante pra muitas mulheres, já que há aquelas inúmeras falácias, como “meninas nerds são feias” ou “é nerd e bonita, essa é pra casar!”. Sem contar o famoso desprezo e a pouca credibilidade dada a nós simplesmente porque somos mulheres. “Vem jogar RPG com a gente, vai ser legal, eles disseram. Você vai ser a Healer. Agora vai ali curar aquele lá, eles mandaram”. WTF? Desde quando gênero tem a ver com gosto por filmes, quadrinhos, jogos etc. e capacidade para entender sua complexidade? Embora não menos importante, vamos deixar essa discussão pra um outro dia…

Voltando ao mundo do audiovisual, é claro que não podemos esquecer também dos próximos filmes de Star Wars. Até agora, a Disney confirmou pelo menos mais dois episódios da franquia, fechando a trilogia iniciada por Rey e Finn.

Então, meninas, podemos esperar muita coisa boa dos novos lançamentos, principalmente do cinema. Assim, tendo cada vez mais representações feministas na cultura pop, com certeza nossas meninas crescerão mais empoderadas, críticas e felizes, sabendo que podem desempenhar os papéis que quiserem, não apenas os predeterminados pela sociedade. Já nós poderemos nos sentir cada vez mais representadas e ir ao cinema com gosto para prestigiar esses momentos!

Glossário

*prequel — história ficcional que se passa anteriormente a outra, segundo o dicionário Word Reference (http://www.wordreference.com/enpt/prequel)

**Com exceção das cenas excluídas com Mon Mothma.

***Sócio-acêntrico: termo criado pelo Prof. Dr. Ricardo Alexino Ferreira.Trecho. Para ele, termos como “minoritários” ou “minorizados” não traduziam, com clareza, qual o significado ou os motivos para se utilizar essas palavras: “o termo criava confusão quando se tratava de comunicação. Fazia-se uma associação com a quantidade de indivíduos. Os negros, por exemplo, são mais de 50% da população do País, mas são um ‘grupo minoritário’. Por isso a escolha do termo sócio-acêntrico, porque o sentido maior seria dizer que esses grupos não têm representação social e política.”.

Originally published at www.siteladom.com.br on February 29, 2016.

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Lado M

Relações-públicas que faz desabafos e devaneios por aqui. Feminismo, diversidade, cultura nerd e perrengues do cotidiano estão presentes.