Todo mundo quer um pedaço de Inês Tânia Lima da Silva, a Inês Brasil
Circulou nas redes, com a velocidade de uma péssima notícia, o vídeo em que a cantora Inês Brasil estaria se masturbando com um microfone em cima do palco durante um show em Manaus (AM). As reações ao vídeo, amplamente divulgado nas mídias sociais, são das piores possíveis: Inês recebeu várias ofensas e novamente a objetificação sexual da mulher negra veio à tona. Há um esforço contínuo daqueles que insistem em afirmar que não se trata de abuso nenhum, mas sim do show business que faz parte de sua carreira. Afinal, ela estava ali porque quis, não? Não, não é bem assim — e, novamente, nós vamos explicar.
Estar aparentemente em posse de seu corpo e de sua sexualidade não faz de Inês Brasil uma mulher livre. Isso porque a mídia, a TV e as redes não consomem nada além de sua polêmica e de seu corpo, e não tratam Inês com respeito ou dignidade. Seu diálogo sobre sexualidade é aproveitado por esses meios com um safado disfarce de exaltação, e o produto que se extrai dela, como “Inês Brasil no Danilo Gentili” ou “Inês Brasil na Luciana Gimenez”, a título de exemplo, só serve para ridicularizá-la cada vez mais. Com o tratamento que recebe da sociedade, Inês Brasil está menos para “mulher liberta”, e muito mais para “mulher em liberdade condicional”, campo pela qual já passaram Rita Cadillac, Gretchen, Tiazinha, Feiticeira: todas colocadas a serviço da sexualização exacerbada para consumo, com prazo de validade bem determinado, por um mercado e por um público que tenta convencê-las de que as consequências dessa exposição sexual foram causas da própria vontade delas.
Não que Inês Tânia Lima da Silva não queira estar ali, fazendo o que faz e o tornando público, mas as falácias do “liberalismo sexual” pegam muito desprevenidamente as mulheres de origem simples e humilde, e mais desprevenidamente ainda as mulheres cujo passado carrega resquícios da prostituição. Se você acha que toda mulher que se prostitui o faz porque quer tanto consciente quanto inconscientemente, e que a decisão por esse caminho nada mais é do que a expressão de seu livre arbítrio, talvez você deva se atentar um pouco mais aos dados sobre prostituição no Brasil e no mundo, em especial aos dados que atingem as mulheres negras em situação periférica e à margem social.
Sobre a vida das mulheres que foram expostas à prostituição ilegal em um país estrangeiro, não há nada do cenário glamouroso de Uma Linda Mulher. Ter de se prostituir e se drogar a fim de conseguir sobreviver é um passado que a própria Inês não esconde, ao mesmo tempo que não se auto pune. O que deriva disso é seu caldo cultural, que representa diversas parcelas sobrepostas: mulheres negras e pobres, prostituídas, exiladas em terra estranha, onde o corpo vale mais do que o rosto, e o rosto vale mais do que a mente. Aliás, para muitos, a mente delas não vale nada.
A atenção dada a Inês não me encoraja a pensar que a mídia faz dela uma protagonista da própria cena, mas uma marionete a favor da polêmica e do escândalo. Nos programas de auditório, que parecem oferecer uma recepção calorosa a Inês, todo tipo de pergunta inimaginável só reforça o que muitos pensam dela: que ela é apenas uma mulher risível, de seios protuberantes, que diverte quando fala de Deus. Mas Inês é mais do que isso. E o nosso papel, das mulheres em geral e das mulheres negras em específico, é o de proteger Inês e todas as mulheres dessa exposição catastrófica que coloca milhões à margem, aproveitando-se de seus corpos indiscriminadamente e tentando fazê-las acreditar que estão ali em nome da “libertação sexual”.
Não, isso não é libertação sexual. Ser filmada simulando uma masturbação com um microfone num palco, ser capturada por aqueles que a corroem e abertamente divulgada nos Trending Topics do Twitter não é, nem de longe, liberalização sexual. Nem que ela queira, nem que seja seu mais profundo desejo pessoal, isso não é um “grande favor” que as mídias estão prestando a Inês. E aqueles que se dizem seus fãs, que vibram a cada frase ou música que ela profere, que se fantasiam dela no carnaval e sabem dizer “Inês Rainha, resto Nadinha”, poderiam ser mais ativos em protegê-la do abuso físico e emocional.
Sim, abuso. Já parou pra se perguntar qual criatura se vê feliz sendo explorada por todos os lados? Talvez esses fãs sejam mais perpetuadores do abuso e consumidores do escândalo, do que gente preocupada se Inês come, vive e dorme bem. Se Inês é feliz, se Inês é triste, se tem sonhos, se medos.
Como mulher, cabe a mim dizer que tanto Inês Brasil quanto eu, você e todas nós estamos suscetíveis ao abuso em nome do “era a vontade dela”. Se justificaram uma adolescente estuprada por trinta homens como sendo “a própria vontade dela”, se justificaram o assassinato de uma mulher por ser “a própria vontade dela de se meter com bandido”, e se justificaram o homicídio de uma mãe e seu filho pela “própria vontade dela de privá-lo do convívio do pai”, todas nós estamos sujeitas, mais cedo ou mais tarde, a cair no balaio do “mas era vontade dela”. Seja atravessando uma esquina no cair da noite, ou dançando nua num palco à mercê dos abutres, a grossa voz social, num claro tom masculino, sempre estará lá para ecoar “se não queria isso, que não estivesse lá”.
Originally published at www.siteladom.com.br on March 27, 2017.