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Vivendo sozinha em quarentena

Natália Sanches
Lado M
Published in
3 min readJul 22, 2020

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Moro sozinha há quase 2 anos, mas minha casa sempre esteve cheia. Entre reuniões com amigos, amores de algumas noites e visitas de estranhos conhecidos, o som do espaço sempre foi preenchido com músicas acústicas e frases roteirizadas. A escrivaninha cheia de papéis e as canetas pincelando valores e prazos se encontravam com meus quadros, o que realmente revelava a personalidade da moradora que ali vivia.

Minha casa era assim o ano passado, viva. Mas esse ano, ela se encontra morta. Contrariando o poeta cearense.

O contexto por si só já é horrível. Contrair uma doença pelo toque, com chances de ser fatal e ainda sem vacina. Junta-se aos termos irresponsáveis para controlar a pandemia, que não dão prioridade para a vida do povo, apesar de coroado por ele. Soma-se os desafios da vivência dos âmbitos privados de um país continental e finaliza-se com o dinheiro enterrando qualquer chance de sobrevivência.

Sou uma das privilegiadas que posso ficar em casa e, num primeiro momento, era só isso que pensava. Apesar de ter bronquite asmática e, por isso, ser grupo de risco, eu tinha uma casa, eu tinha um emprego e eu tinha saúde. Tomei essas condições como únicas para eu não ter motivos para reclamar sobre a imposição da quarentena, mas óbvio que depois de algumas semanas, não foi suficiente.

Viver sozinha e em quarentena é ruim. Descobri-me a pessoa que ama mandar áudios, pois assim podia ouvir minha própria voz e como ela soa para as pessoas, sem parecer enlouquecedor. Nunca tinha escutado podcasts e agora não consigo cozinhar sem ouvi-los. Aliás, comecei a cozinhar na quarentena e, hoje, valorizo muito quem tem talento para isso, pois eu não tenho.

Não vou dizer que existe um lado bom na quarentena, pois não há. Existe a prova de que se vive nela, mas existem sequelas. Quando uma rotina é estabelecida e consegue-se passar as 12 horas diárias na frente do computador, o olho cansa, a miopia aumenta, a lombar dói e não existe o “chegar em casa” para aliviar as frustrações do dia.

Sozinha não há o barulho da televisão ligada para você tentar adivinhar o que seu companheiro ou companheira estava vendo antes da sua chegada. A solidão é bem concreta no fim do dia.

Quando um filme é escolhido para preencher suas horas no final de semana, é preciso escolher bem. A arte tem a capacidade de atender desejos que a realidade dos aplicativos de apenas entretenimento não tem. Se somos o resultado dos lugares que visitamos e das pessoas que convivemos, quando se está sozinha há meses em casa, as lembranças tomarão conta desse espaço, não as novidades de cada postagem de rede social. No meu caso, em outras épocas, as lembranças foram justamente o que fez com que eu vivesse na escuridão mesmo vendo a luz do sol. Hoje, trancada na minha caverna, isso pode ser pior do que já é.

O que não nos dizem é que apesar da vida parecer estagnada, ela não está. Vive-se muitos sentimentos em 4 meses. Entrei para todas as estatísticas. A de receber mensagens de ex-amor e ficar sem entender se a raiva e o amor realmente são complementares, a de quebrar certos preconceitos, mas manter certos princípios, a de me apaixonar por amores impossíveis, a de ter medo de não fechar as contas do mês, a de questionar se me arrumo por estética ou querência, a de ter parentes com a doença e rezar, mesmo não sendo religiosa, a de querer beber em um mesmo dia uma garrafa inteira de vinho.

São 120 dias de quarentena. São mais dias vivendo sozinha, mas pior do que viver sem ver rostos diferentes e sem abraçar minhas pessoas comuns é depender do outro para sobreviver. Por causa do outro e, no caso, do outro brasileiro, o viver sozinha pode durar um tempo sem fim para quem fica.

Por isso, apesar de estar em casa, sozinha e de quarentena, aqui eu dependo só de mim para sobreviver.

Cuidem-se de si.

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Natália Sanches
Lado M
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é Natit. Professora especializada em Estudos Brasileiros, paulistana de nascença, mas catarinense de coração. 17 tatuagens e cabelo curtinho. Gosta de tulipas.